UM PRETÉRITO MAIS DO QUE PERFEITO
É final de 1993 e estou com meus pais na estação de trem da cidade de São José do Rio Preto com destino a São Paulo. Meus cabelos ainda cobrem impecavelmente todo couro cabeludo, e a pouca massa muscular faz de mim um garoto franzino. Um Short marrom e uma camiseta branca estampada o Dumbo, personagem de desenho animado, é a roupa que mais uso, até porque acho que é a única.
Meses depois esse personagem me renderia um apelido nada agradável, isso por causa das minhas orelhas de abano similares as do animal. Custou-me a perdê-lo. De volta para o futuro para o futuro, agora bem mais velho, posso confirmar o quanto odiava esse apelido, nem precisava dizer o nome, bastava uma simples passada de mão na orelha e eu já entendia a mensagem implícita.
No relógio da estação marcavam 10h40 e nos alto-falantes anunciavam que o trem partiria em vinte minutos. Tudo pronto para o embarque, e lá estava o meu velho carregando nossas malas e não deixava minha mãe ajudá-lo, coisas de homem, sabe como é, né? Enfim, embarcamos. O chefe da estação passava olhando todas as portas para conferir se estava tudo certo, logo após, ele dava um apito alto e longo, o maquinista respondia com duas apitadas. Esse era o sinal de que estava tudo pronto para partir.
Minha mãe e eu sentamos ao lado da janela, lugar onde passei a maior parte da viagem, só vinha para o banco do corredor, com meu pai, quando passavam os carrinhos vendendo comida. Imediatamente arrumavam um jeito de desviar minha atenção para a janela novamente, pois as condições financeiras os obrigavam a isso. Na época eu não entendia, mas me conformava. Um senhor que vendia pão com mortadela ia para lá e para cá. Sabe aquela cara comprida que todo moleque faz quando quer alguma coisa? Era exatamente essa que fazia. A gente até que tinha algo para comer, mas eu queria aquela que o homem gritava: “Quem come um quer comer dois!”. E assim foi com o carrinho da pipoca, do iogurte, do picolé etc.
A viagem foi cansando igualmente a leitura desta crônica, a janela já não tinha mais nada de atrativo, já havia visto animais desde os que voavam até os que rastejavam. A fome apertou, e o jeito foi me virar com o que tinha na bagagem mesmo. Agora sim, barriga cheia e um pouco mais de sossego para meus pais. Passavam as estações e os apitos dos guardas, passavam postes, árvores, mas as horas pareciam que eram sempre as mesmas. Pouco mais de doze horas de viagem dentro de um negócio barulhento não há bom humor que resista.
Num momento de silêncio comecei a perceber que o barulho que o trem fazia nos dormentes dava um ritmo legal, começava baixinho, mas aumentava quando chegava no vagão o qual estávamos e depois ia baixando até que fosse engolido por outro. Depois de uma eternidade, finalmente ouvi o último apito do chefe da estação e uma frase animadora: “aqui é a estação terminal Luz, por favor, desembarcar”.
Hoje não tenho mais as orelhas de abano, mas como nada é perfeito, o nariz rouba a cena. Ainda não sou rico, mas faço questão de comprar tudo o que tenho vontade, mesmo que não seja mais o pão com mortadela. Nas viagens de trem da estação Barueri a Osasco da linha 8 da CPTM, consigo recordar com saudade a minha infância pobre, mas feliz.