o touro e o vira lata

O TOURO E O VIRA LATAS

O Arrastão era um vira lata, meio fox com rabo sem cortar, com pintas vermelhas, cuja maior característica era a valentia. Nunca vi um cachorro não correr quando alguém se abaixava fingindo pegar uma pedra, o Arrastão fazia isto, não só isto, mas mesmo quando a pessoa pegava um meio tijolo nas mãos ele a enfrentava. Ele não era de morder, mas fazia um escarcéu tremendo mostrando os dentes e rosnando, com o olho fixo nas mãos do agressor para se desviar se a pedra fosse lançada. Não me lembro dele em briga com seus semelhantes, mas não corria deles. Adorava provocá-lo, mas depois de muito barulho ficávamos em paz.

O Truma era um touro holandês vermelho, quando o papai o comprou, era um novilho ainda, muito manso. Com o tempo foi marcando o seu território, foi perdendo a mansidão, acho que por causa do seu rebanho bovino de fêmeas, ele não devia gostar que mexessem nelas, marcou seu Newton, que todos os dias bolinava as tetas de seu harém para tirar o leite que sustentava o sítio. Marcou o Rui, meu irmão, companheiro mais velho nas lides do sítio, que subia no tratorzinho Massey Fergunson e punha o Arrastão sobre a frente do trator, o touro vinha furioso e empurrava o trator, o mano desengatava a marcha e deixava o boi empurrar até se cansar e depois engatava empurrando o boi de volta e, o vira latas fazendo zueira na orelha dele.

Uma vez o Rui foi à Fazenda Serra Negra, em Minas Gerais, aprender a fazer inseminação artificial em vacas, com o Tio Severo, voltou de lá e começou a treinar nas vacas do Truma, que não deve ter gostado nada disto. Um dia o Rui foi buscar o rebanho no pasto montado no esperto cavalo de carroça que tínhamos, não percebeu que o Truma estava a espreitá-lo, quando se deu, era tarde, o bovino jogou cavalo e cavaleiro para o alto, mas por sorte o cavalo foi para um lado e o Touro perseguiu aquele que nada tinha com a história da inseminação, o cavalo.

Em outra ocasião, foi o seu Newtom, o retireiro, um gaúcho valentão e forte, foi pego desprevenido, Truma o jogou no chão e ficou patinhando nas partes baixas do seu Newton, se não fosse uns pedreiros que estavam por perto, o homem teria ficado capão. Foi levado às pressas para o hospital evangélico e conseguiram recuperar a sua hombridade.

Papai também levou um esfrega do Truma, a mim ele perdoou, pois era eu que distribuía o trato para ele e para suas companheiras, deve ter reconsiderado, pois ele ouvia os meus gemidos em razão das picadas de abelha ao pegar a cana moída na carrocinha de distribuição nas baias. Uma vez tive que ficar esperto, ele estava se recuperando de uma aftosa e como não representava muito perigo fui buscá-lo para o trato, mas ele estava melhor do que eu imaginava, deu uma investida na minha direção, mas me protegi atrás de um cinamomo e, ele ainda não estava muito são.

Um dia encontramos o Truma de perna quebrada na estrada, deve ter querido avançar nos caminhões de cana que atravessavam o sítio em direção a usina de açúcar Três Bocas. O Arrastão correu para atormentá-lo e ele não pode investir como de costume, e o cachorro ficou ali desenxabido, sem saber o que fazer. Papai também muito chateado, não só com o prejuízo, mas ele gostava muito de animais. Mandou chamar o especialista bovino ortopédico nestas condições, o açougueiro do patrimônio vizinho.

Outra especialidade do Arrastão era cercar o Isaltino, um primo querido, quando chegava em nossa casa, isto era uma diversão para o Rui, tínhamos que prendê-lo para o primo ficar em paz.

Um dia trouxemos do Sitio uma viagem de lenha na carreta para a cooperativa de laticínios (CATIVA em Londrina), o Arrastão veio junto no jeep Toyota, assobiávamos convidando-o e ele de um salto pulava e se agarrava com as patas dianteiras na parte de cima da porta e a gente o puxava para dentro. Paramos na Cativa e não sei por que o Arrastão sumiu, saímos sem perceber sua ausência, o trator e a carreta ficaram na cooperativa. Quando sentimos sua falta, no outro dia, o procuramos nas imediações, mas nada. Três dias depois, quando fomos buscar o trator o descobrimos lá. Deve ter desistido de tentar voltar para casa e deduzido que voltaríamos para aquele lugar.

No casamento da Helena, a irmã mais velha, o Arrastão apareceu com um olho vazando, deve ter tomado um meio tijolo na cabeça. No meio do casamento recebemos a notícia, fez se uma roda de pessoas preocupadas e tristes com isto, os tios de fora ficaram assustados com aquele ar circunspecto, queriam saber o que tinha acontecido, e aliviados souberam que era com o cachorro e não com o noivo. Não tenho certeza se era no casamento do Rubens e Helena ou do Isaltino e Cecília. Sei que de qualquer maneira não compartilhamos deste alívio não. O Arrastão se recuperou bem, ficou caolho, mas não perdeu a valentia.

Quem nos presenteou o Arrastão foi o cunhado, muito tempo depois retribuímos o presente com outra caixa de sapatos com uma Cook Spain dentro.

Lembro-me do Arrastão ficar deitado debaixo da cadeira de plástico azul, na varanda, em que o meu papai se sentava para ler, nas tardes calorentas de Londrina. Um dia, um Tio chegou com uma história lá em casa falando de doenças transmitidas por cachorro para crianças pequenas, e o Alexandre ainda era pequeno (ele já foi pequeno) e nos levou o Arrastão. Ainda bem que já não morava mais na casa dos meus pais, senão não iria me perdoar se isto tivesse acontecido comigo lá.

Papai, Rui, o Arrastão e o Truma já não estão entre nós, mas ainda estarão aqui enquanto houver alguém para contar e outros para ouvir histórias deles.

Um beijo no coração de vocês, o lugar de acolhida destas histórias.

Defranco
Enviado por Defranco em 11/12/2012
Reeditado em 16/08/2020
Código do texto: T4029761
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