Cheiro Acre
Era nove da noite e eu estava me arrumando para sair e correr. Sim, correr. Um gordo de cento e vinte quilos correndo. Não ria! Esse é só o início da piada, fica melhor no final. Como eu dizia, o porco se arrumava pra ir correr, numa tentativa frustrada e infantil de ficar menos gordo e menos porco. Eu estava pronto, tênis calçados, roupas vestidas, músculos aquecidos. Era só sair de casa. Mas desviei o caminho e passei pela cozinha. Na cozinha havia uma geladeira. Na geladeira havia uma jarra de suco. E todos sabemos como são os porcos: gulosos. Não resisti e tomei um copo cheio e gelado de suco de maracujá. Mas eu sou um porco sentimental e uma das coisas que eu mais gosto de sentir é remorso. Fingi que queria sentir remorso daquilo e realmente senti. Podia sentir o líquido descendo pela minha garganta e dançando no meu estômago. Não podia mais sair pra correr. Eu havia consumido o pecado da gula, estava sujo e não podia mais sair pra correr. Então veio a ideia.
Sabe, eu nem sempre fui gordo. Quando eu tinha 17 ou 18 anos eu pesava setenta quilos. Um ano antes eu pesava cento e seis. As mulheres que estão lendo este texto devem estar curiosas sobre como consegui perder quase quarenta quilos em um ano. É simples. Muito exercício físico, alimentação balanceada e... bem, uma vez eu vi um blog chamado Anna Mia. Várias pessoas falavam sobre como perderam peso em pouco tempo através da bulimia. No começo eu achei idiota, mas aí tentei uma vez, tentei duas. Quando percebi estava perdendo muito peso. Viciei naquilo. Mas nada vem de graça. Isso e mais uma tentativa de suicídio com remédios me deram uma puta duma úlcera. Ferrei minha garganta e perdi grande parte do brilho da minha voz. Também vivia nervoso por causa das brigas com meu pai, exercícios físicos exagerados. Fodi minha minhas costas. Mas emagreci. Emagreci e engordei de novo. Hoje peso cento e vinte.
E então veio a ideia. Eu prometi a mim mesmo que nunca mais ia fazer isso, que nunca mais ia enfiar o dedo na garganta pra perder peso. Pra quem estiver tentado a fazer isso, saiba que trás muito mais desvantagem do que vantagem: dor muscular, garganta arranhada, dor de cabeça, coração acelerado, problemas gastrointestinais. Fora que é uma puta duma bagunça. O vômito forçado nunca sai num jorro lindo e reto em direção à privada. Não. A força que você faz com a garganta respinga o vômito pra tudo quanto é lado, e fica uma meleca em volta que dá nojo na hora de limpar. Mas o pior de tudo é o cheiro. Cheiro acre, ácido, enjoado que te faz vomitar ainda mais.
Mas a culpa e o remorso eram mais fortes. Pensei em desistir, mas quanto mais tempo eu pensava, sabia que mais difícil ia ser vomitar (é sempre mais fácil forçar o vômito até vinte ou trinta minutos depois da ingestão do alimento. Mais que isso é realmente dolorido e nojento). Decidi-me. Subi, liguei o chuveiro pra tentar abafar o som e fiquei de frente pro vaso sanitário. Contemplei-o por alguns instantes, como se fosse um pequeno santuário budista ao qual eu deveria reverenciar com meu vômito. Tossi com força, bati no peito pra facilitar o ato. Tomei fôlego e enfiei o dedo na garganta. O começo é sempre mais difícil, pois o corpo oferece certa resistência. É preciso lutar contra ele, mas mais com jeito do que força. É preciso encontrar o ponto certo e fazer a pressão certa. Mais cedo ou mais tarde o corpo cede e vem o primeiro jorro. Mas não há tempo de contemplar seu trabalho. Se você para o corpo retoma suas forças e oferece resistência novamente. É preciso continuar com o dedo firme no lugar e pressionar num intervalo de tempo preciso. Essa é a forma menos dolorida de vomitar uma grande quantidade de alimento.
Fazia mais de um ano que eu não vomitava. Tive um pouco de medo no começo, porque sei o quanto doi. Mas anos de prática me ensinaram a técnica correta. Fiquei até surpreso. Foi fácil e rápido, sem muita sujeira e nem muito barulho. Quando me dei por satisfeito pensei comigo mesmo "me dei bem". Mas como eu disse anteriormente, essa religião cobra seu preço. Dores fortes na garganta, dor de cabeça. Estômago latejando. Tenho dores crônicas nas costas, então tá doendo pra caraleo. Sem condições de sair pra correr. Mas pior de tudo era o cheiro... aquele cheiro forte de ácido misturado com o suco de maracujá que eu tomei. Esse cheiro me trás lembranças, épocas ruins da minha vida em que eu fazia isso por me sentir um merda, por não ser aceito na sociedade por causa do meu tipo físico.
Agora estou aqui sentado na frente do computador com a boca fedendo a esse cheiro acre (é preciso muito mais que escovar os dentes pra tirar o cheiro, lembre-se que ele vem do estômago). Isso que eu escrevi na verdade aconteceu há poucos minutos atrás. Estou com o corpo todo doído, louco pra ir pra cama. Estou arrependido. Me sinto um verdadeiro merda, mas não por ser gordo que nem um porco, e sim por ter cometido esse ato infantil e impensado. Se você já fumou ou se drogou, imagine isso como minha maconha. Eu sei que me faz mal, quero me livrar disso, mas quando bate o desespero é pra isso que eu volto. Vou tentar me controlar melhor daqui pra frente e não fazer isso de novo, porque na boa... dói pra caraio.
- E essa foi a piada do gordo bulímico. (Aplausos e risos. Fecha a cortina).