Presente de inverno

Ela atravessa a rua a passos largos, encurvada pela força do vento e a apertando bem no corpo o grande casaco que a protege do frio. Os flocos de neve passam rodopiando e ela semicerra os olhos diante da claridade ofuscante daquele chão branco e escorregadio. São duas da tarde, mas o dia cinza parece fazer que a noite está começando. Entra rápido no vestíbulo e fecha a porta atrás de si. Tira o gorro, sacode os cabelos e solta do casaco uns flocos de neve que agora derreterão no calor da aconchegante sala.

O marido a espera e ela cumprimenta-o com um beijo mais pra desanuviar as rugas que vê se formarem na testa dele.

Outras pessoas estão na sala, mas ela se concentra numa revista pra transmitir confiança ao marido, pois sabe que aquele diagnóstico que receberão hoje é a ansiedade dele no último mês. Fingindo-se calma, transmite paz a ele; pega-lhe na mão e beija-a suavemente com um sorriso doce. Ele vê o carinho dela e se sente reconfortado.

Esse casamento foi a melhor coisa de sua vida e não deixará que a doença o impeça de viver essa alegria. Devolve o sorriso com amor.

A atendente chama.

Quando saem do consultório, suas vidas mudaram. Um aperta a mão do outro, tentando ganhar e dar força. Esforço sobre humano, que gasta suas energias. Não falam nada. O que dizer? Ele está a quilômetros dela, embora pareçam juntos. Ela sente, nada diz e percebe que dor é algo solitário.

Ainda sem falar, vão pra casa. Ela sabe que ele precisa de um tempo e respeita o mutismo dele. Dormem em silencio e de mãos dadas.

Iniciam o tratamento quimioterápico. Muitas dores, a solidão que se instala no coração de quem sofre, a sensação de impotência de quem vê o ser amado sofre sem nada poder e o tempo se arrasta.

Os planos de um filho foram engavetados.

Ele se recupera. É primavera e saem pra um passeio. As cores de tudo encantam-no como nunca. Saiu de um inferno e vê beleza até num pedaço de papel azul amarrotado no chão.

Decidem ter um filho. Processo demorado. Finalmente a desejada gravidez.

Ela está com três meses e ele adoece. Em dois meses, ela está preparando um funeral, enquanto prepara um quarto de bebê.

A gravidez torna-se um peso, uma alegria imprópria, uma renovação da saudade, uma tristeza mesclada de alegria, um coração que se rebela contra aquilo e ao mesmo tempo agradece pelo filho.

Finalmente chega o dia. Nasce um menino. Ela olha pra ele e já não está só. Vê nele uma prova de amor e força do marido. Ele se recuperou por pouco tempo pra dar-lhe este presente. A partir desse dia, não chora mais, pois se sabe muito amada e o presente que recebeu, assegura-lhe a presença dele agora no filho.

Dois anos de casamento, um filho, um marido morto. Em toda sua vida nunca houve um período tão intenso.

É inverno de novo e a neve que lhe lembrava aquele fatídico dia, agora é celebrada com alegria nesse recomeço com o filho.

Senta-se na cadeira de amamentar e olha os flocos dançando ao sabor do vento lá fora, enquanto o filho mama calmamente. Ela sorri com as lembranças do marido. Foi feliz. É feliz. Dores fazem parte.

SENTE QUE ATÉ PODRI DANÇAR NA NEVE!!