Amor em preto e branco

Ele fuma calmamente, observando as espirais de fumaça ascenderem, enquanto sua mente vagueia. Quem dera, a fumaça que ora sobe pudesse levar seus anseios, lembranças, subir, subir, entrar naquela janela, entrar naquele túnel do qual agora ele olha o começo, lá atrás no tempo, uma vida que não foi vivida.

O sol passeia, alongando mais e mais as sombras e ele começa a acompanhá-las no chão.

Estremece quando o som de uma janela batendo corta-lhe as lembranças como uma faca afiada. Instintivamente levanta os olhos para aquela janela, e ela está entreaberta, com as cortinas balançando ao som de uma música que ele ainda consegue ouvir. Devaneia...

Uma noite linda de outono, naquele salão iluminado. Ele passeia entre os grupos de jovens. As moças estão em seus grupinhos e de longe ele vê a figura da noiva, envolta numa nuvem de chiffon azul claro. Trocaram alianças na noite anterior e seu coração canta ao vê-la; para absorto na contemplação daquela criatura delicada em quem ele põe suas esperanças de felicidade terrena e a quem ele atribui o melhor que há no mundo. Sorri dos trejeitos delicados dela, enquanto mostra o anel de noivado ás amigas. Ah, essa doce e intocada juventude. Sente-se feliz ao lembrar que nesse inicio de vida madura, compartilhará disso com ela.

Passeia entre os grupos, aproxima-se e troca um olhar cúmplice e apaixonado com a noiva; fogem dali e trocam furtivos beijos perto de uma longa cortina branca. Ela retorna ao grupo de moças e ele acende um cigarro. Uma lufada de vento frio entra e as cortinas dançam, como se fugindo daquilo. Ele sente mais do que ouve um murmúrio percorrer o salão. Olha pra trás distraído e tem aquela visão.

Ela desce as escadas. parece enluarada... enluarada – de onde lhe surgiu tal ideia? ela está coberta de cetim negro, sem jóias e o único brilho da figura são os anelados e rebeldes cachos dourados que fogem do penteado e os rasgados olhos azuis que saltam no rosto magro.

Para sem perceber embebido naquela visão... enluarada..., instintivamente olha pra fora buscando a lua, sem entender o rumo de seus pensamentos. Não há lua naquela noite, mas ela parece a lua, altiva, luminosa, brilhante, indiferente, sem perceber o que deixa na sua passagem. Se espanta com o rumo de suas ideias e sai em busca de um garçom.

A noite corre solta. Ele dança com a noiva e sorriem felizes, cercado de olhos protetores.

Mais tarde é apresentado à figura enluarada e recebe dela um olhar franco e límpido que desmistifica as ideias que outros espalham acerca dela. Eles conversam calmamente e ele só vê uma mulher só, segura ao ponto de ser ingênua e que nada percebe dos meandros daquela sociedade e dos labirintos daquele ambiente. É uma pessoa de espírito livre que não se apercebe do que causa em torno de si e, para os mais generosos apenas uma moça que foi criada de forma heterodoxa em outro país. Para os mais ferinos...

A noiva aproxima-se e após a apresentação fala de sua admiração pela outra, estando a par de sua vida através de amigas em comum. Sabe que a outra não é bem vista, mas sua protegida juventude que mal iniciou, torna-a imune à isso. Conversam por um tempo de maneira informal e alegre. Despedem-se.

Ao longo daquele ano, ele viveu um penoso noivado, não porque não amasse a noiva, mas porque um outro universo abriu-se diante dele com a luminosidade de uma lua cheia.

A noiva nada via em sua formidável e voluntaria cegueira e os que viam, não sabiam direito do que viam ou se havia alguma coisa a ver.

Eles casaram e ele vivia a vida conjugal com um cantinho de seu coração, sem que a noiva percebesse que sua felicidade equilibrava-se precariamente no senso de dever dele e na ética de outra.

Poucas vezes ao longo desses anos, ele a viu. Nada se concretizou entre eles, tudo eram esperanças abafadas, anseios natimortos, emoções emprestadas, alegrias furtivas, dois ou três beijos escondidos e a certeza de que não poderiam trair aqueles que os amavam e neles confiavam. Aquele mundo não comportava essas transgressões e a cerca que os impedia de aproximar-se, beneficiou a esposa.

Tentou algumas vezes tocar no assunto, mas a cega confiança da esposa e o cerco que os protegia, impediram suas tentativas, sem que uma palavra houvesse sido dita.

Vieram os filhos - doce alegria, entregou a filha em casamento - emoção agridoce, ...e enviuvou. Chorou.

Sofreu a perda da esposa que o cercara de mimos e, protegida naquele casulo com sua memorável capacidade de não perceber o que a rodeava, o fizera feliz. Uma vida inteira se quebrando e se reconstituindo sem que ela desse conta disso. Sim, uma vida domestica amorosa e uma esposa cuidadora, refrearam seus intentos e o deixaram permanentemente faminto daquilo que não vivera. Essa fome agora fazia parte do seu ser e nem requeria saciedade.

Vinte e oito anos depois ele está ali, sentado diante do prédio e se pergunta o que dizer, o que fazer após aquele hiato tão longo. Onde começar, como falar.

Sabe que ela o espera, que sempre esperou, mesmo se mantendo longe e sem contato. Pensa, e de repente percebe que nada mudará porque eles mudaram e embora haja aquele baú a chave em seus corações, sente que a fechadura não se abrirá facilmente.

Olha pra cima e as cortinas voando, lembram-no daquela noite e da moça feita de luas.

Sente que não saberia lidar com aquilo agora, aquele rapaz não mais existe, embora tenha lhe legado o sentimento. Sabe que o tempo passou. ..

O cigarro queima-lhe o dedo e ele o solta espantado, enquanto abruptamente se levanta e vai embora. É um velho, com dois netos e sem coragem de recomeçar. Foi feliz? Foi. Melhor guardar no peito aquela moça rodeada de luas. Passa as mãos nos raros fios brancos, sorri consigo.

Sua natureza, sua alma jejuara ao longo de quase trinta anos. Talvez morresse, se fosse alimentada. É sua natureza agora, viver de parcos recursos emocionais, naquela cela espartana onde seu coração se aninha.

Sai sem olhar ora trás. Ela entenderá. Viveram isso a distancia, intensamente, e não saberão agora encaixá-lo nessa vida. São fiapos, memorias que não cabem nessa realidade.