UM AVIÃO ATEU OU NACIONALISTA
Eu só preciso confirmar a data, mas isto não vai invalidar o que vou narrar aqui. Vou registrar, então, que foi em 1918.
A Europa vivia numa situação econômica extremamente adversa, imersa na pobreza com grandes conflitos, intolerância religiosa e sob a pressão do nacionalismo irracional, aforante, é claro, a guerra.
A pequena cidade de Maria Augusta, próspero porto do Rio Iguaçu, crescia harmoniosa sob a batuta dos imigrantes, principalmente poloneses que vinham fugidos das agruras de seus países de origem. Vinham em busca do paraíso para seus familiares. Vinham despidos de tudo, trazendo apenas seus conhecimentos, suas práticas e uma vontade ímpar, próprio dos primeiros empreendedores.
Eram, na sua grande maioria, católicos, e extremamente religiosos respeitando as tradições, costumes e ritos do catolicismo.
A sexta feira santa era o ponto alto da servidão a Deus.
O povo vestia a melhor fatiota, enfeitava suas carroças, seus cavalos e vinham com a família para a cerimônia e procissão do senhor morto.
Naquele tempo as formas de diversão não eram tão perigosas quanto as que existem hoje. Rachas e outros esportes radicais ainda não faziam parte do cotidiano da simplicidade da cidade, mas existia na época um sujeito, que por certo forçou a coisa, lá no além com os espíritos, e acabou nascendo fora do tempo dele. Nasceu muito antes, e aprontou e se deu mal.
Ele gostava de brincar e se divertir com a forma simples e natural de viver do povo. Foi piloto de guerra, mas um acidente fez com que ele recebesse baixa e voltasse puto da vida para casa. Para ele a guerra era um esporte para lá de radical. O filho de uma puta, que Deus o tenha agora em um bom lugar, não chegou a viver para ver o final da primeira grande guerra mundial.
Sexta feira da paixão.
A cidade se aquietou e se vestiu de luto pela morte de Cristo. Nas Igrejas os santos se cobriam de roxo e o povo, falando baixinho, contritos se aglomeravam ao lado da Igreja para a procissão. E a procissão saiu da porta da capela para percorrer algumas ruas e retornar a Igreja.
O piloto era ateu e detestava esta quietude. Detestava a cidade vestida de luto. Resolveu dar um corretivo no povo.
Arquitetou um diabólico plano e enquanto o revia se divertia com antecedência.
Emprestou um teco-teco de um amigo que conheceu na guerra e deixou-o preparado para a cerimônia da sexta feira santa.
Faria vôos rasantes sobre a procissão para ver os cavalos em disparadas e o povo em polvorosa.
A cidade toda compareceu. Com velas nas mãos, muitos com lágrimas nos olhos, contritos acompanhavam a procissão.
De repente, quebrando aquele sacro-santo momento, ouviu-se o ronco de um motor de avião.
A concentração já não era a mesma e os fieis, com seus semblantes carregados, demonstravam contrariados com aquilo.
O avião fez um rasante quase decepando as cabeças dos cavalos e das pessoas. O povo se dispersou mudando o tema da oração - rogavam pragas e amaldiçoavam o piloto. O padre arregaçou a batina e bateu em retirada. Os cavalos assustados, em disparada, relinchando desesperados levavam atrás deles as carroças vazias.
Abandonaram o esquife no meio da rua, e Jesus não teve outro jeito, saiu correndo também.
A balburdia estava implantada.
O avião fazia os rasantes e dava para ouvir as gargalhadas do energúmeno e encapetado piloto.
Muita gente se jogou ao chão imaginando que os terríveis nacionalistas húngaros estivessem ali para dizimá-los.
Foram momentos cruéis - ronco do avião sem o silencioso, relinchos, gritos e barulhos das carroças se quebrando.
De repente um estrondo.
Seguiu-se um silêncio sepulcral.
Lá na esquina, em meio a uma intensa poeira, um avião beijando o chão era consumido por labaredas enormes que subiam altas lambendo o céu.
Cristo voltou, deitou no esquife, e o povo retornou à cerimônia.