Um dia no cemitério

A morte é uma das minhas inquietações mais latentes, sempre achei que morrer é um desperdício, principalmente porque os vivos geralmente são mais importantes do que os mortos.

Nesse fim de semana morreu um dos meus nobres companheiros de cachaça, sempre que era possível íamos à mesa de um bar para tomarmos umas e outras. A paixão pela bebida é antiga, só que nunca fico bêbado, sempre faço minhas contas de quantos copos já entornei, com esta tática sei quando tenho que parar. Quando começo a errar nas contas já sei que estou no meu limite e antes que minha mulher apareça, saio pela tangente.

Meus amigos são Zé Mulato e Zé Pretinho. Mas hoje Zé Mulato nos pregou uma peça, bebeu tanto que não aguentou o tranco, bateu com as botas. Zé Pretinho, um pouco mais jovem e certamente com menos problemas nos rins e fígado, continua de pé. Disse que iria para casa tomar um banho para poder ir ao enterro prestigiar o velho companheiro.

Antes de chegar ao cemitério, ele concluiu que ainda havia espaço em sua barriga para mais uns goles. Depois de despejá-los goela abaixo e não satisfeito, comprou uma garrafa de 51 e saiu com ela para o meio da rua em direção ao cemitério. Cambaleando chegou para a última despedida com a garrafa na mão. Entrou na primeira capela que viu pela frente, foi esbarrando em todo mundo e, ao mesmo tempo dizia: não empurra não, não empurra não, tem pinga pra todo mundo. Os familiares assustados e sem saber o que fazer, tentaram retirá-lo do local sem sucesso, ele insistia em ver o defunto. Quando deparou com o corpo estendido no caixão, desatou a chorar, abraçou o morto e lhe deu vários beijos. Limpou os olhos com as costas das mãos, contou casos para o morto como se ele ainda estivesse vivo, riu como se estivesse no boteco, enquanto os familiares, atônitos, olhavam uns para os outros sem entenderem nada do que estava acontecendo.

Lá pelas tantas, um pouco mais sóbrio, percebeu que aquele defunto não era o do seu amigo, mas sim de uma senhora de mais ou menos oitenta anos de idade. Pensou em todas as bobagens que poderia ter dito e, talvez, até mesmo como justificativa, tentou colocar dentro do caixão a garrafa de pinga, o que os familiares da morta não consentiram. A confusão foi enorme e cada vez que alguém o empurrava ele gritava: não empurra não, não empurra não, tem pinga pra todo mundo.

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 06/03/2007
Reeditado em 09/10/2017
Código do texto: T402737
Classificação de conteúdo: seguro