A Pétala de Rosa
Era um lindo objeto de vidro azul, transparente, que ficava muito bem sobre qualquer toalha que minha mãe colocava sobre a mesa. Quando nasci, fazia mais de dois anos que a linda peça valorizava e alegrava com seu estilo elegante e gracioso, o ambiente simples da nossa casa. Em setembro deste ano, ia completar sessenta anos. Creio que tinha mais idade, pois meu pai a comprara de uma família que vendera todos os móveis e outros pertences, para ir morar no Rio de Janeiro.
A idéia era de leveza. Sobre uma base redonda, que adelgaçava à medida que se ia alongando verticalmente, estava uma bandeja cujas bordas em modelo sinuoso, davam-lhe graça e beleza. Sobre a bandeja, um jarro fino e longo terminava também com bordas ondulantes. Aquela obra de arte me fascinava. Quantas vezes, observei-a em cada detalhe! Cheguei a desenhá-la, mesmo sem ter nascido com esse dom, mas a imitação que resultava das garatujas, me fazia feliz.
Quando minha tia contava estórias ao me fazer dormir, eu as vivia como se fosse personagem atuante, e a fantasia virava realidade. Ainda hoje, guardo na memória todas aquelas situações fantásticas que ela sabia reproduzir muito bem, com tanta sutileza, chegando a repetir sempre com paciência e criatividade, quantas vezes meu capricho insaciável lho pedisse. De todas essas maravilhas do mundo das fadas, das bruxas e dos castelos encantados, uma permaneceu no meu mundo afetivo e criativo, pela associação que eu fazia da narrativa ao objeto de vidro que estava sobre a mesa da sala de jantar. Era a estória de uma menina chamada Quita, que deslizava no rio sobre uma pétala de rosa. Para mim, a fruteira de vidro era a pétala de rosa. Cada vez que era contada a estória, rapidamente era feita a conexão.
E a minha Pétala de Rosa, ali, exposta na sua finura e transparência, era um conforto para os meus olhos, fazendo-me viajar pelo encantamento da fantasia que povoa a mente infantil. Às vezes, o sonho era interrompido, quando a usavam para colocar frutas ou outras coisas mais. Isso me entristecia. Uma vez, fui repreendida porque transferi umas laranjas para outro recipiente. Aquela transparência azul não merecia ser violada por coisas que não fossem os pezinhos de Quita e o toque macio das águas do riacho.
Com o passar dos anos, tudo tende a se modificar. Aos poucos, as quimeras vão-se esvaindo à medida que a realidade toma forma de crosta em nossa vida, apoderando-se
de nossos sentimentos e de nossos corpos, numa metamorfose inevitável. A criança deixara sua infância azul, na transparência de sua Pétala de Rosa. Novas auroras surgiram, e se evadiram a cada pôr-do-sol, num círculo contínuo e inexorável, fazendo-me ver as coisas como elas são e a vida por um prisma diferente. O objeto passara a ser visto por mim, como uma raridade antiga que minha mãe exibia com orgulho. Um dia, como herança, ele veio embelezar a minha sala de jantar, onde ficou por um período de vinte anos. Já não tinha mais a parte superior. Somente a bandeja, que eu chamava de Pétala de Rosa, vencera ao desgaste do tempo.
Ontem, segurei-a carinhosamente sob a torneira para lavar. Sem saber explicar o motivo, sem nenhum atrito, derrepente estava em pedaços, em minhas mãos, chegando a me ferir. Chorei copiosamente, sentindo no coração a dor provocada pela sensação de perda daquela que representava para mim, uma companheira e que, por um capricho do destino, tivera seu fim pelas minhas próprias mãos. Naquele momento, vi toda uma existência na minha Pétala de Rosa, deslizando nas águas de um rio como na história de Quita, enfrentando obstáculos ora fáceis ora difíceis, desfazendo-se entre rochedos.
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Maria de Jesus Fortaleza/08/12/2012