DDD - Diário de Derrotas [37]

07h50m

Você acorda sabendo que vai se foder o dia inteiro. Não tem jeito.

08h00m

Não estou com saco pra levantar e viver. Já dá pra sentir e imaginar o calor que está lá fora e que vai perdurar até a hora que eu me enfiar no chuveiro gelado daqui umas doze, quinze horas. Não ando me alimentando direito e sei lá, tá difícil levantar, hoje...

08h50m

Depois de ter enchido a mochila com cuecas, camisetas, toalha, livro, truck e todas as demais provisões que serão necessárias nos próximos dois dias, eu saio de casa me sentindo derrotado (com o peso dela atenuando o fracasso); saio de casa na hora que já deveria estar aonde tenho que ir.

09h20m

Já tem 10 minutos que estou fritando e suando sob esse sol do caralho e nada da lotação aparecer. Já era uma merda a situação, e aí, semanas atrás, inventaram de estender o itinerário da barca até uma favela e, agora, quando ela chega onde embarco, já chega praticamente inabarcável.

09h24m

Chegou. Não dá pra embarcar. Praguejando, atravesso a rua pra pegar o ônibus que me levará direto ao Banco. É uma catraca só, uma sentada só - caso eu tenha a sorte de sentar - e chego lá. Contudo, o caminho é feito de forma rastejante, modorrenta, lenta; um caminho cheio de pontos de ônibus onde só embarcam velhos e operadoras de telemarketing. Pegando a lotação que desisti, seria ela, o trem e um ônibus. Três catracas e o trajeto feito em 40 minutos.

09h30m

Embarquei e sentei num banco da parte da frente. Já ponho fones no ouvido e fecho os olhos pra não ter que ficar aturando velho com olhar úmido, cobiçando meu banco. E não é nem questão de má educação ou infração do direito do idoso, é questão de estar morrendo de sono e de estar num banco livre.

09h50m

Abro os olhos. Suar, suar, suar. Suar parado, suar sem estar movendo um músculo. Abro os olhos e vejo que se passaram vinte minutos desde o momento em que sentei e o ônibus não andou praticamente porríssima nenhuma. Fecho os olhos. Continuo suando.

10h35m

Desembarco. Na hora em que já deveria estar no escritório. Vou seguindo pelas ruas tranqüilas do Tatuapé, o bairro metido a besta da Zona Leste de São Paulo. Chego ao Banco, deixo os malotes, atravesso a rua e bebo um chá gelado com limão e traço um pão na chapa enquanto vejo uma participante de reality show chorando na televisão. Depois de pagar, saio novamente pra rua, a caminho do ponto de ônibus; saio pro calor, pras intempéries que me aguardam.

10h40m

Outro ônibus. Outra catraca. Outro tédio.

10h51m

Chego na estação de trem/metrô. Passo pela catraca do trem. Pego o trem, cujo ar-condicionado bem gelado me reanima um pouco. Mas quase nada. Queria voltar pra casa, tomar um banho gelado, vestir uma samba-canção e ficar andando descalço entre meu quarto e a cozinha (geladeira, cerveja, mais especificadamente) com as bolas soltas, alisando e conversando com as minhas gatas, perguntando com o foi o dia de gatinho delas, dar beijinho na ponta do nariz, ficar dando tapinha na bundinha até levar unhada na bochecha e etc. Mas não. Não. Nunca.

11h10m

Desembarco na Luz. Faço a travessia epopeica que interliga a CPTM com a Linha Azul atrás de uma morena colossal, gostosa, gostosa mesmo. Embarco. Sento. Sento ao lado de uma coisinha coxuda. Já não tenho nem mais saco pra ficar olhando; arrimo os cotovelos nas coxas e fico olhando bovinamente o nada.

11h25m

Chego na estação Paraíso. Desembarco do Azul e subo no Verde. De novo.

11h30m

Enfim na Avenida Paulista. O lugar que mais encaro em um dia do que encarei minha própria cara feia em 20 e todos anos. Um lugar incansável na produção de mulheres maravilhosas que brotam do chão, das paredes, dos bueiros, das saídas de ar do metrô. Dou aquele bom dia a contragosto pros porteiros e vou direito ao vestíbulo deles me trocar. Tiro a camiseta regata e vasculho a mochila atrás da camiseta que está fedendo mofo que escolhi usar nesse dia especial de tomação no cu ímpar. Assim que eu coloco a camiseta, o calor parece dobrar. Entro no elevador. Fico nele por cinco andares trancafiado com uma loira maravilhosa. Mas estou pensando mesmo é na minha cama e nas minhas gatas...

11h35m

Bom, já começou a sabatina. Eu me programo mentalmente para fazer coisas X durante o dia e essas coisas geralmente são aquelas que ficam pra eu fazer na hora de ir embora. E isso todos os dias. Aí fica uma pilha de notas fiscais em um canto, uma pilha de guia em outro, uma outra pilha de planilhas que imprimi pra alguma coisa que nem me lembro mais e assim vai, com a minha mobilidade na mesma ficando escassa e a minha angústia claustrofóbica com requintes de desejo de mandar todo mundo se foder se expandindo indigerida e indefinidamente.

13h40m

Saio pra almoçar, enfim. Com muita fome e sem vontade de comer e/ou pagar. Que vida. O sol continua ali em cima, inclemente. A gravidade me prendendo no chão aqui com tudo, ignorando a minha vontade de voar até o litoral e ficar agachadinho onde as ondas desaparecem na areia. Mas não. Faço um prato com pouca comida e pago mais de vinte reais. Eu mereço mesmo me foder...

16h00m

Como disse, nada, NADA, do que eu havia programado para fazer, eu fiz. Surgiram alguns levantamentos cabeludos. E as pessoas, cara, as pessoas, como elas me irritam.

17h15m

Completamente enfastiado por causa do calor e da já citada sabatina, feita in-loco pela sócia do escritório, subo até o oitavo andar para pegar uns documentos e passar alguns segundos sem ninguém falando o que eu não quero ouvir no meu ouvido. Então eu abro a porta e surge um rapaz. Ele surge. Surge sim. E diz.

- Rafinha, preciso conversar com você. Eu tenho umas dúvidas.

- Sim? - Solto um "sim" tão entediado que ele até pisca.

- Espera aí, deixa eu jogar essa garrafa no lixo e a gente conversa!

Aí eu fico esperando ele ir até o lixo. Lá, ele encontra outra pessoa e começa a conversar. Do meu lado direito tem uma janela que dá no miolo oco do prédio - que deve ter algum nome técnico que desconheço totalmente. Fico olhando lá pra baixo, esperando, pacientemente. Por fora. Porque por dentro...

Aí ele volta e começa a fazer as perguntas. E são perguntas de cunho e termos jurídicos os quais eu, por não cursar Direito, não tenho a menor ideia. Só que eu responder que não sei não basta, a pessoa continua perguntando, caralho.

17h30m

Estou novamente na minha mesa, encarando os papéis e intercalando entre uma janela de rede social e outra, totalmente disposto a não fazer porra nenhuma.

17h45m

Aí você entra no banheiro querendo lavar o rosto, dar uma mijada, escovar os dentes e se depara com seu reflexo jorrando sangue pelo nariz e pela boca.

19h16m

Já não tenho nem palavras pra expressar a imensidão do meu desgosto a essa hora, hora que eu já deveria estar em algum lugar que não aqui, nesse escritório.

Blé.

07/12/2012

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 07/12/2012
Reeditado em 07/12/2012
Código do texto: T4024823
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