Deu a louca em Ramon

A praça estava calma naquela manhã ensolarada de sábado. Sentado sozinho num banco perto da lagoa, Ramon ouvia o canto dos pássaros nas jabuticabeiras carregadas e o balançar suave das folhas de uma enorme mangueira, cuja sombra acolhedora era um convite irresistível à preguiça, a ficar ali de boa, sem fazer nada. Em seu colo, aberto na primeira página, um livro de contos de Terezinha Pereira que ele já tinha lido, mas que pretendia reler naquela manhã. Só que não teve jeito.

É que, de repente, Ramon ouviu um barulho vindo de trás, um som mecânico que, de longe, parecia vir de um cortador de grama, mas que, ao se aproximar, estava mais para motor de broca de dentista (aquele som torturante, insuportável). Ao sentir que a coisa já estava bem perto dele, Ramon virou a cabeça e viu um menino de dois ou três anos, daqueles bem rechonchudos, montado numa moto de três rodas movida a bateria, descendo lentamente o caminho que levava à beira do lago. Logo atrás dele vinha o pai, um gordinho bem-apessoado, enfiado num traje esporte fino e carregando, numa bolsa de couro, o que certamente era seu computador portátil último modelo (devia ser um jovem empresário ou executivo, daqueles que não perdem tempo na vida quando o assunto é dinheiro).

Foi assim que acabou o sossego de Ramon. Ele até tentou ignorar aquele pai sério, concentrado na tela do seu computador, enquanto o filho gordinho (que era a cara do pai) ia de um lado para o outro, sem parar, montado na sua moto de barulho irritante. Não conseguiu. Procurou outro banco, mas em cada um havia uma pessoa, e Ramon só se sentava em bancos de praça se fosse para ficar sozinho.

Não havia passado nem cinco minutos quando Ramon ouviu um outro barulho, parecido com o primeiro, mas ainda mais irritante. Dessa vez ele não olhou para trás. Deixou que em seu campo de visão fosse entrando lentamente um carrinho motorizado da Barbie, pintado com todos os tons de rosa possíveis no mundo, guiado por uma menina de no máximo três anos, tão gordinha que parecia nem ter pescoço. Ela vinha acompanhada da mãe, uma jovem alta e corpulenta, certamente com vários quilos acima do que qualquer médico lhe recomendaria como ideal, carregando uma caixa de isopor e uma bolsa de couro que, ao ser aberta, revelou em seu interior (alguém adivinha?) um pequeno computador portátil. Ela não tinha cara de empresária. Parecia mais esposa de um, daquelas bem ociosas e depressivas, que preenchiam seu tempo livre em casa comendo guloseimas e fuçando redes sociais.

Ramon foi se irritando cada vez mais com aquele barulho (a sensação era como se dois enxames de abelhas-robôs estivessem voando ao redor da sua cabeça), mas decidiu ficar, para se torturar, como quando ligava a televisão de madrugada e assistia aos programas das igrejas mundiais e universais, para ver até onde ia aquela loucura – a encenação, a exploração, a estupidez – e se indignar, se revoltar inutilmente até o dia clarear.

A cena então era a seguinte: num banco, um pai obeso no computador. No outro, uma mãe obesa no computador. E passando na frente de Ramon, indo e voltando, duas crianças obesas motorizadas, filhas dos pais obesos nos computadores. Aquilo foi irritando Ramon de tal forma que faltava pouco para ele explodir e cometer uma loucura. Por quê? Ora, porque Ramon é assim. Tem coisas que o irritam e ele fica louco. Vai entender... Eu é que não entendo.

E assim ficou Ramon, sentado no banco da praça, vendo aquele vai-e-vem insuportável, ouvindo os zumbidos infernais, até que a mãe se levantou, abriu a caixa de isopor e retirou dois potinhos de sorvete, fazendo Ramon se enrijecer todo, suas mãos crisparem-se sobre o tecido da calça e seus olhos se arregalarem, cheios de espanto. A mulher pediu às crianças que parassem seus brinquedos e entregou um potinho para a filha e outro para o seu coleguinha. O pai a agradeceu quando ela passou perto do seu banco, trocaram uma ou duas palavras simpáticas e voltaram para seus computadores.

“Sorvete...”, pensou Ramon, “Essas duas bolinhas precisavam era de um suco natural e muito exercício: correr, brincar de pique, de bola, de cabra cega... E esses dois imbecis que elas têm como pai e mãe ficam aí parados, vendo-as engordarem... Que horror...”. De repente a menina começou a chorar. Seu sorvete tinha caído no chão. A mãe voltou e lhe deu outro. O menino também quis, mas como não tinha terminado o seu, disse que queria de outro sabor, porque ele não gostava de chocolate. A mulher então lhe deu um de morango. E os dois ficaram ali, chupando seus sorvetes, com o carro e a moto ligados, embora parados. E Ramon não entendia por que aqueles artefatos, mesmo parados, continuavam fazendo barulho (ou o zumbido estava era só na cabeça de Ramon?).

A menina terminou seu sorvete e pediu outro. O menino também. E a mãe foi dando sorvete para eles, sem parar, com a maior naturalidade. Ramon contou quatro potinhos para cada um e ficou pensando se isso também não seria caso para o Conselho Tutelar: abandono, alimentação inadequada, falta de exercícios físicos...

Ramon estava no seu limite, quase perdendo a razão, quando a mulher se levantou para levar mais um sorvete para cada um. As crianças nem chegaram a tocar nos potinhos. Quando deram por si, seus sorvetes estavam dentro da lagoa, lançados por um Ramon já transfigurado em monstro: olhos vermelhos, lábios tremendo, boca espumando, cabelo molhado de suor... A mulher se assustou tanto com Ramon, que ficou parada, atônita, sem saber o que fazer; e assistiu impassível a ele retirar com delicadeza as crianças de seus veículos motorizados, carregar a moto num braço e o carro da Barbie no outro e, num movimento de força hercúlea, jogá-los também dentro da lagoa. O pai nem viu nada. Quando levantou os olhos, Ramon já estava em cima dele, arrancando de suas mãos o computador, que saiu voando como um bumerangue sem volta em direção à lagoa. O mesmo aconteceu com o computador da mulher, e também com a caixa de isopor. Tudo voando. O homem ainda tentou tirar satisfação, esbravejando, ameaçando chamar a polícia, mas Ramon lhe deu um empurrão que o jogou longe e saiu correndo dali.

Coitado do Ramon... Que sofrimento! Um dia que prometia paz e alegria, lazer e descontração, por nada se transformou num inferno... Mas pelo menos foi um desabafo. O dia foi perdido, Ramon precisou dobrar a dose do seu calmante no meio da tarde, mas eu não sei o que poderia ter acontecido se a panela de pressão que era Ramon não tivesse encontrado naquele surto repentino a sua válvula de escape... Não é bom nem pensar.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 06/12/2012
Código do texto: T4022334
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