O GRANDE ADEUS AO POETA MAIOR

A noticia foi curta e lancinante: sabe quem morreu? - perguntou-me a companheira, respondendo antes mesmo que eu esboçasse qualquer reação - Vinicius. Vinicius está morto. Foi edema pulmonar agudo. Mas como, meu Deus, se ele tinha sido operado de alguma coisa no cérebro e, segundo consta, passava muito bem, redargúi meio aturdido.

Este diálogo brusco substituiu o prosaico beijo, no meu retorno do trabalho, pouco antes do almoço, naquela quarta-feira, nove de julho de 1980. Com muita emoção a companheira deu-me a noticia. Ela que bem sabia o quanto Vinicius representava para mim, intuição feminina manifestada desde os nossos primeiros momentos de vida em comum, confirmada nos livros e discos que me presenteava, com a assinatura do poeta maior.

Lembro-me que já há algum tempo assaltava-me o temor da fatalidade ora acontecida e me perguntava como seria o mundo sem Vinicius. Estava logo descobrindo. A dor era grande e logo naquele momento sentia os primeiros desencantos da ausência do poeta do encontro, poeta da mulher e do operário em construção.

Meu primeiro contato com Vinicius de Moraes aconteceu por volta de 1960, aos dezesseis anos de uma adolescência irrequieta e combativa. Foi na sede da Frente Nacionalista de Cruz das Almas, no primeiro andar daquele velho sobrado dos Curi que existia na esquina da Praça do Lavrador com a Rua dos Poções. Chamou-me a atenção um longo poema pregado ao mural, ilustrado a bico de pena com a figura máscula e imponente de um trabalhador. Era "O Operário em Construção" expressão eloqüente do humanismo e sensibilidade do poeta que assim rendia um tributo à dignidade e justeza da causa operária.

Essa imagem engajada e socializante foi o meu único referencial do Vinicius até conhecer Galvão, do grupo Novos Baianos, àquela época agrônomo como eu, recém-formado, em treinamento na Universidade de Viçosa. Isso aconteceu em 1966. Entre as raras folgas do estudo, partilhávamos das mesmas angustias e tormentos desencadeados pelo retrocesso institucional em que mergulhara o país com a ditadura militar.

Mas a poesia tinha espaço garantido em nossas preocupações. Comentávamos nossas criações e discutíamos a obra de poetas que mais nos impressionavam. Vinicius, aquela época, era ídolo do Galvão, tanto quanto o João Gilberto, astro da bossa nova, com quem ele convivera em Juazeiro. Assim conheci a outra face de Vinicius, sua poesia lírica, sensual e terna, uma exaltação à vida e ao amor. Conheci Vinicius, o compositor popular que destruiu as barreiras entre a poesia erudita e a canção, facultando a milhões o prazer de desfrutar da beleza do seu estro, antes privilegio de minorias intelectualizadas.

E como foi marcante a sua contribuição ao modernismo, enquanto poesia. Quebrou preconceitos, desprezou a erudição em favor da liberdade de idéias, cantou os sentimentos mais profundos e existenciais do povo. Embora tenha produzido muitos sonetos, por sinal maravilhosos, como o Soneto da Separação e Soneto da Fidelidade, os meus preferidos, poucos como ele souberam libertar os ritmos do verso dos grilhões da rima e da métrica, com igual imaginação, ternura e mistério.

Na partida do Vinicius, duas lembranças me ocorreram de imediato. A primeira, confortadora, sugerida pelos próprios versos do poeta na elegia pela morte do seu pai Clodoaldo, também, poeta: "Tua morte, como todas, foi simples. É coisa simples a morte. Dói depois sossega. Quando sossegou - lembro-me que a manhã raiava em minha casa - já te havia eu recuperado totalmente: tal como te encontras agora vestido em mim. Não és como não serás nunca para mim um cadáver sob um lençol. És para mim aquele de quem muitos diziam: "É um poeta...”

Outra lembrança foi a do poema composto por Vinícius em homenagem a Mario de Andrade, na sua morte. Intitula-se: Manhã do Morto. Ele narra que durante um sonho tenebroso com um desastre aéreo é acordado por sua mulher e, ainda na cama, recebe a noticia da morte do amigo. Imediatamente ele sente que o amigo morto se apossa de seu corpo e de sua alma. Essa presença se faz sentir em seus pensamentos e atos até as cinco da tarde quando sente "a pressão amiga desfazer-se do meu ombro... ia o morto se enterrar no seu caixão de dois metros".

Curiosamente assim fiquei com o Vinicius o resto do dia e senti-me na obrigação de compor um poema em sua homenagem. Parte da tarde e da noite passei de caneta na mão e uma folha de papel em branco diante de mim, à espera de uma atitude. Foi em vão. Nada consegui criar.

Pela madrugada, em lance onírico eu compusera, e mostrava orgulhoso ao amigo Galvão aquilo que me parecia uma obra perfeita, a maior louvação que se podia fazer ao nosso ídolo. Subitamente acordei e corri para a escrivaninha para tentar escrever o poema que em sonho fora tão talentoso e merecera os maiores elogios do Galvão. Simplesmente não me recordava de um só verso, uma só palavra. Ansioso, olhei para minha companheira que, desperta e sorridente, perguntara-me o que estava acontecendo. Ela mesma me confirmou ter sido acordada por mim que recitava em voz alta. E pelo que ela pode perceber tratava-se dos dois últimos versos do Soneto da Fidelidade do mestre Vina: "Que não seja imortal, posto que é chama; mas que seja infinito enquanto dure" (o amor).

Fiquei impressionado. Incapaz de compor algo à altura do poeta, o meu inconsciente fora por ele apossado e no meu delírio recitava em sua homenagem o soneto que tanto admiro e gostaria de ter composto. Que mais poderia eu fazer? Foi dai que nasceu esta crônica.