BICICLETAS CONGELADAS

Aqui na Suécia, tanto em Estocolmo, a capital para onde vamos vez ou outra no trem noturno, voltando na noite do dia seguinte, como em Malmo, a terceira maior cidade sueca, onde estamos passando uma temporada, tem sido espetáculos inéditos, grandiosos e diários para nós assistir a neve se precipitando como chuvinha fina ou assustadora, dependendo de sua intensidade, parecendo pedacinhos de papel ou flocos de algodão dançando no ar ao sabor do vento gelado. Ela se joga ousada sobre os telhados, os carros, as pessoas, os ônibus, as bicicletas, vestindo a todos indistintamente com a pungência de sua alvura atordoante.

Crianças sapecas e felizes preparam bolinhas de neve para jogar umas nas outros, divertindo-se o quanto podem no aproveitamento dessa estação característica dos europeus, sob o olhar risonho e aprovador de seus pais que os apanham nas escolas ou simplesmente passeia com eles se distraindo pelas ruas atapetadas de branco, todos, como é óbvio, devidamente aparamentados para se sentir confortáveis sob essa mórbida temperatura sueca que, muitas vezes, atinge onze graus negativos. As mais novinhas, recém-nascidas, circulam aconchegadas nos carrinhos de bebês, alguns deles conduzindo até três crianças empurradas por mães ou pais despreocupados ou, eu nunca tinha visto antes, puxadas por bicicletas como se fora uma carrocinha, só que cobertas para não cair neve sobre os pequeninos.

Os diversos carros estacionados sob a vigilância implacável dos parquímetros se tornam figuras cômicas usando grossas camadas de gelo como se fossem suas roupas, e sob elas como que desaparecem até que seus proprietários chegam e, utilizando-se de pequenas pás de plástico, as próprias mãos ou algo apropriado que só eles tem, auxiliados por filhos e esposas, raspam o gelo grudado e liberam, pelo menos, o pára-brisa e os vidros do lado para ligar o automóvel e sair com boa parte da neve sobre ele, como de fato os vimos em muitos lugares circulando com o gelo montado em seus tetos à guisa de carona intrusa.

A arte de apreciar esses fatos inéditos e diferentes de tudo que temos no Brasil inclui cenas tocantes e, podemos dizer, até mesmo românticas. Como as bicicletas congeladas. Elas estão em todos os lugares à espera de seus donos, brancas de tanta neve a cobri-las, quietas, geladas, fazendo parte integrante da paisagem melancólica proporcionada pela chuva dos flocos algodoados que se abraçam enquanto caem do céu e vão mudando de água para gelo quando finalmente descem sobre a terra e se amontoam e amoldam na forma das coisas e seres sobre os quais se acomodam. Inclusive das bicicletas, e aqui em Malmo elas ultrapassam os milhares. Se houver apenas uma parada solitária nalgum portão, nalguma calçada ou encostada por aí ao relento, a neve aproveita para fazer dela sua casa, sua cadeira, seu assento, e por sobre ela se juntar aos milhões de fragmentos de gelo e, juntas e unidas, compactas, se transformar em gelo duro no celim, no guidom, nas rodas, nos freios, em todo o seu inerte ser, grudando-a no chão ou na parede. Num estacionamento onde centenas de bicicletas brigam por espaço, ocorre o mesmo, ficam todas completamente congeladas, rígidas, mortas aguardando seus donos.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 05/12/2012
Código do texto: T4021591
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