EM TERRA DE CEGO QUEM TEM UM OLHO É REI
Eu jogava muito, às vezes começava pela manhã e ia até à tardinha. Mas nunca fui um craque. Tive dias de craque. Alguns. Eu era um jogador, ponta esquerda, de desempenho irregular. Dependia muito de quem me marcasse. Se alguém me visse só uma partida não tinha ideia do que eu era capaz, tanto de bom como de ruim. Foi num dia bom que um olheiro me olhou, coitado. Nesse dia eu arrebentei. Tirei o atraso de não sei quantas partidas ruins. Peguei um Mané de lateral direito. Eu ia prá cá e ele prá lá. Eu pisava na bola e o cara ia simbora sem bola. Dei-lhe caneta, lençol, drible da vaca, elástico, lambretinha, pedalei, entortei o cara, fiz o escambau. E o olheiro olhando tudo. Ao final da partida o sujeito olheiro, óbvio, contratou-me para jogar uma partida de futebol de salão. Seria uma final de um torneio muito importante – pra ele.
Eu fui.
Dezesseis anos, um metro e setenta e dois, setenta quilos, moreno, canhoto, cabelo Black Power, cocha grossa e muita ginga. Quem me visse diria que era uma “promessa”. Mas tinha que ver num raro dia bom. Assim fui para a quadra do Grêmio dos Ferroviários disputar a final do torneio importante – pro cartola que me contratou. O outro time era formado por jogadores profissionais do Ferroviário Atlético Clube, o famoso Ferrim, hoje Ferrão. Depois fiquei sabendo que esses caras promoviam os torneios sistematicamente. Sempre ofertando a mesma taça. Como eles continuamente ganhavam, ficavam com toda a grana das inscrições. Lembro que estavam em quadra Lúcio Sabiá, Arimateia e o Grilo. Tirando o Arimateia, os outros dois não sabiam jogar futebol, sabiam dar pancada. O Lúcio Sabiá era capaz de entrar de chapa no joelho do pé de apoio da Hebe Camargo. O Grilo daria um carrinho frontal, com os dois pés, na Maria da Penha, jogando a “pobi”, com cadeira de rodas e tudo, no segundo andar das arquibancadas. O Grilo começou como geleiro do Ferrim. Geleiro era aquele garoto que corria com a bolsa de gelo quando o massagista entrava no campo. Um dia de treino faltou o lateral esquerdo e colocaram o Grilo pra jogar. Ele bateu, no ponta direita, no ponta esquerda, no centroavante, no juiz, no bandeirinha, no goleiro, na torcida, amassou a trave, mordeu o treinador, fez um buraco no alambrado, arrebentou o banco de reservas, rasgou as redes, comeu a grama e no final do dia seguinte conseguiram convencê-lo que o treino tinha acabado.
- Entra ai, disse finalmente o treinador para mim.
Desesperado.
Não tinha palavra melhor para descrever meu estado naquele momento. As arquibancadas ao redor da quadra estavam lotadas de estudantes. O placar apontava dez a um para o time da casa. Os “cavalos-batizados” do Ferrim batiam pra valer. Tome vaia no meu time. Eu tinha pedido a camisa número seis, e me deram a VI. Os números eram em algarismos romanos, nunca tinha visto isso. Eu entrei com a camisa escrito VI atrás. Dez a um pro time da casa. Quadra lotada. Tome vaia. Inspirados no VI da minha camisa a torcida foi ao delírio. Nunca ouvi tantas ofensas e tantos gritos e tantas gargalhadas. “Vai garoto e te consagra” falou o fi de quenga do treinador me empurrando pra entrar na quadra. Gritos e vaias. Passaram a bola pra mim. Eu fiquei olhando pra torcida. Girei o corpo filmando de uma trave a outra. Ou foi o mundo girou? A bola passou entre minhas pernas grossas. E eu catatônico, boca aberta, olhos esbulhados, coração taquicárdico. E tome vaia, palavrões, impropérios e ofensas.
Gostaria de contar como terminou essa história, mas há um hiato na minha memória entre esse ultimo instante na quadra e o hospital.