Lembrança de uma ação anti-heroica
Muitos anos atrás, eu estava em pé na parte traseira de um ônibus, quando o burburinho dos passageiros me chamou a atenção. Percebi que o ônibus estava parado na pista, de maneira injustificável, e que um episódio estranhíssimo se desenrolava logo em frente.
Observando com atenção, percebi o motorista de braços e pernas cruzadas, se deliciando em assistir à cena como se presenciasse um espetáculo cinematográfico,dando a impressão de sentir falta, apenas, de um saco de pipocas para complementar a diversão. À sua frente, permanecia estacionado um carro novo, ao lado do qual dois homens discutiam. Logo em seguida, começaram a lutar.
Em meio ao cenário surpreendente, percebi um pneu, uma chave de rodas e um revólver que propiciaram a seguinte interpretação: um homem muito negro tinha acabado de trocar o pneu de seu carro, quando um outro, grande e muito forte, chegou armado, exigindo a chave do veículo. De algum modo, o negro conseguiu mandar a chave de rodas na testa do ladrão, segurar a arma e se envolver em uma luta com o adversário ferido.
Nesse momento, intervim dentro do ônibus, iniciando uma alga zarra, incitando a galera a descer e resolver o problema. Pensei ter insuflado os ânimos dos passageiros, mas quando “descemos” do ônibus, percebi que nenhum deles me seguiu.
Caminhei sozinho até onde a luta continuava, para me deparar com uma situação inusitada: 3 homens, então, se mantinham atracados, unidos pelas mãos em torno de uma arma. Um deles, o maior e mais forte, visivelmente ferido, ostentava o rosto francamente ensanguentado. Os 3 permaneciam parados, com as mãos e braços embolados em luta pela arma.
Compadeci-me do homem ferido, e sem nenhuma noção da situação, embora sem saber o que fazer, ia tentar ajudá-lo, quando ele disse em tom ameaçador: ─ eu vou matar um! No mesmo instante, descobri quem era o bandido. Juntei-me ao bolo, agarrando também os seus braços muito fortes. Ele permanecia recostado no carro, com os dois braços para o alto, segurando a arma acima da cabeça.
─ Eu vou matar um!
Pronunciadas com um revólver na mão, essas palavras ganharam um tom profundamente ameaçador.
Imediatamente passamos a apertar o braço do vilão mais forte e concentradamente; tínhamos que despertar para o perigo, parece que nos acostumamos com qualquer coisa.
O homem tentou limpar os olhos do sangue que descia profusamente da ferida horrenda na testa.
─ Não deixa ele limpar o olho; disse alguém.
─ Pode deixar , disse eu equivocadamente ─ vai espalhar ainda mais o sangue.
O homem me olhou com o rabo do olho, eu estava a seu lado; era um olhar vil, marcante e amedrontador.
O homem limpou os olhos mais demoradamente do que devíamos ter deixado.
─ Não deixa mais, falei.
Novo olhar, semelhante, mas ainda mais vil que o anterior.
Permanecemos longamente naquele impasse.
O tempo tem uma tessitura peculiar, uma espécie de elasticidade capaz de alongar quase eternamente certos momentos.
Então, o terceiro de nós, que havia descido do mesmo ônibus que eu, suponho, mas pela outra porta, disse:
─ Vamos segurar o cara pelas pernas e braços e levar para a delegacia!
A sugestão me pareceu sumamente cômica; tive que fazer um enorme esforço para não retumbar uma enorme gargalhada, completamente inapropriada à situação. A delegacia distava vários quilômetros do local, e o homem, fortíssimo, mantinha o revólver em suas mãos.
O ônibus continuava parado, com o motorista se deliciando em assistir ao espetáculo de seu camarote; o impasse não se resolvia.
Enquanto eu tentava imaginar uma solução para o embaraço em que estávamos metidos, como em um filme, entrou em cena um novo personagem: alto, magro, e de óculos escuros; apontou a arma para todos nós.
Alegrei-me com a chegada do curioso personagem, e abrimos caminho para mostrar quem era o bandido, que deveria, portanto, ser o alvo.
─ Solta ele!
─ Ele está armado; disse alguém.
─ Solta ele!
Só então percebemos que o recém-chegado não era um policial, como desejávamos, mas um comparsa do bandido.
Soltamos o homem e corremos em debandada.
Eu entrei no ônibus pela porta traseira, por onde havia saído. O motorista continuava a se comprazer em assistir à cena.
Lembro que o motorista insistia em permanecer parado enquanto o primeiro homem, com a coronha do revólver, quebrava o vidro do carro; e o outro apontava a arma para os passageiros.
Senti a necessidade de me disfarçar, tirei meus óculos e alterei meu cabelo e meu olhar; às vezes funciona.
O homem ficou confuso; não me distinguia no meio dos passageiros. Nesse instante percebi meus braços muitíssimo avermelhados pelo sangue que escorrera da testa do homem, um forte embaraço. Mas então, comandados pelo revólver que o homem apontava para nós, os passageiros voltaram seus rostos para mim, acusadoramente, de um lado e de outro, me expondo abertamente, complementando a ação com um passo de distanciamento que me isolou no centro do ônibus.
O homem se posicionou na minha frente, ergueu a arma acima de um dos ombros e baixou-a lentamente em minha direção, até que algo ocorreu, ele se sobressaltou, e os passageiros me olharam alarmados.
Sou muito míope para ter distinguido a cena com meus próprios olhos, mas adivinhei que o homem tinha mirado o ponto entre meus olhos, mas o tiro tinha falhado.
Enquanto ele mexia na pistola emperrada, eu me abaixei, me movimentei pelo ônibus, e escolhi uma janela aberta, do outro lado do ônibus, como ponto de fuga, Se o homem adentrasse o ônibus eu correria e me jogaria por ali.
Esse momento de medo intenso acarretou um comportamento vergonhoso e, por muitos anos inconfessável. Tendo tido uma atitude quase heroica anteriormente, me via então em busca de qualquer salvação, não me importando minimamente em fazer de escudos os passageiros do ônibus.
Tive sorte, e meu caçador uma certa sensatez ao desistir de mim, para tentar convencer seu comparsa a abandonar a obstinação de roubar o veículo em condições tão desfavoráveis, tendo chamado uma enorme atenção na rua, e permanecendo com a cara e vestes ensanguentadas em pavoroso espetáculo.
Esse foi um dos momentos em que tive sorte na vida.