Um sopro da natureza

Depois de cinco tenebrosos anos escondido no mato, sozinho, vendo noites e dias se arrastarem iguais na mesma insipidez branca do que era então minha existência, uma serpente venenosa entrou à noite em minha barraca e me picou. Enroscada atrás do colchão, devia estar tocaiando um rato que andava por ali em meio ao lixo acumulado de meses – uma tralha de latas, panos e papéis emporcalhados de comida estragada e fezes. Cravou suas finas presas em minha mão quando me estiquei para pegar uma cueca suja largada num canto havia dois ou três anos. Alguma coisa dentro de mim dizia: “pegue essa cueca borrada e queime-a lá fora de uma vez”; mas nem cheguei a pegá-la, senti a fisgada, a dor subindo pelo braço, queimando, latejando. Arrastei-me até a saída, bufando como um touro que luta pela vida, desesperado, sem saber que se vive ou que se morre. Mas eu sabia... sobretudo que se morre.

A mão picada já estava preta quando me aproximei do córrego gelado que passa por ali, a lanterna tremendo na outra mão, iluminando o chão, a água, a mão inchada pulsando, ardendo. “Estou morrendo”, pensei; e não adiantava fazer nada: sem carro ou moto, estava a mais de cem quilômetros do arraial, que ficava no meio do nada, longe de qualquer socorro. Era o fim.

A morte então veio sorrateira, rastejando lentamente pela margem do córrego; tinha olhos de fogo e era mole; parecia uma criança recém-nascida nadando em placenta e sangue, brilhando na escuridão, a boca se abrindo cheia de dentes. Eu sabia o que estava por vir, e sabê-lo me fez forte, corajoso, alegre, como se eu tivesse acabado de tomar a terceira taça de um vinho português encorpado e não tivesse nada com que me preocupar – doença, trabalho, sucesso, fracasso –, nada.

Desde que eu me internara na floresta, havia cinco anos, nada me inquietava. Viver, para mim, era só existir, mergulhado na natureza selvagem que me abrigava. Mas saber-me morrendo, ali, no meio do mato, sozinho, sem a menor esperança de socorro, levou-me de volta àquele apartamento, àquela vida e aos sentimentos que me torturavam naquela época – a ansiedade, a angústia, o desespero, a vontade de riqueza e poder... Foi como assistir a um filme em alta velocidade, que durou pouco, pois logo veio a paz.

A morte estava lá, e vê-la de perto foi como me libertar de novo das dores do mundo, mas sem a sensação de vazio, sem o tédio das noites e dias brancos que eu tinha vivido sozinho naquela floresta.

Hoje, com meu corpo enterrado e quase completamente devorado pelos vermes, posso dizer que sei o que é uma vida na matéria: nada mais que um sopro da natureza, uma bolha de sabão que estoura no ar de repente, uma gotícula de água que se evapora... Um sopro... Nada mais que um sopro.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 30/11/2012
Código do texto: T4013277
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