“ENGRAXATE”

Valdemiro Mendonça

Levantei-me seis horas e fiquei esperando o pedreiro aparecer e tocar o interfone, mesmo sabendo que ele só chegaria às oito horas. Difícil acostumar-me com este mundo novo! Subi os oito degraus de escada do quintal e passei dentro da garagem já saindo sob a copa em forma de guarda chuva de quatro metros de diâmetro que sustenta a minha parreira de uvas, após a copa existe uma rampa de aço que leva ao terraço, nos corrimãos eu soldei arcos de aço e deixei as uvas formarem um túnel até o pátio do terraço onde tenho minha mesa de sinuca, máquinas de lavar roupas vasos de plantas e uma rede, entre algumas mesas e cadeiras. O local serve para várias coisas, é onde fazemos nosso churrasco, onde às vezes componho músicas e outras eu escrevo... Como agora. Deitei-me na rede e fiquei rebuscando a mente em busca de lembranças que tenham marcado minha vida. Nem sei por que me lembrei dos meus tempos de criança pobre... Criança pobre, que bobagem, eu sempre fui e até hoje sou um pobretão, não estou reclamando, a culpa é desta minha birra em não querer mais do que eu preciso, tive muitas chances de ter muito dinheiro, mas não aceitei... Digamos que o meio de ganhá-lo não estava de acordo com meus princípios e não importa, é passado e não me incomoda no presente, mas a lembrança trouxe o menino pobre de sete anos, criativo e capaz de fazer muitas coisas com facilidade. Foi assim que construí uma caixa de engraxar sapatos, ficou linda e elogiada por todo mundo. No sábado de manhã já fui para o jardim da cidade que nasci: “Ipanema”, neste tempo tinha um enorme jardim e era onde os homens que precisavam, iam engraxar os sapatos de pelicas, cromo alemão, vaqueta radar, na verdade variava conforme as posses do freguês. Sentei-me sobre a caixa, todo orgulhoso e fiquei aguardando um incauto... Ah, ah, ah, incauto sim, pois o que eu me esqueci, foi de aprender a engraxar. Era um trabalho tão corriqueiro, nem me preocupei, eu é quem engraxava os sapatos lá de casa, portanto, eu sabia. A graxa eu tinha uma lata em casa, na verdade era meu pai que tinha comprado, mas ele não iria se importar, afinal, seu filho estava tentando trabalhar. A tinta um engraxate, “garoto mais experiente” me ensinou como fazer, ele disse que era tinta de primeira e dava um ótimo brilho no couro, “mas só tinta preta, marrom eu tive que pedir dinheiro a minha mãe para comprar,” a preta era feito com o carvão que existe em pilhas de lanterna, o que eu não sabia é que aquilo cortava os sapatos por ser como a solução de baterias, acida. Hoje fico imaginando quantos sapatos estraguei e os donos deveriam dar tratos à bola tentando decifrar o mistério dos sapatos novos trincarem o couro daquela forma. Mas quem me ensinou disse que era segredo à formula da tinta, não podia contar nem para a família... Acho que o malvado sabia dos danos que ela causava. Logo apareceu meu primeiro freguês... Tá, incauto! Um rapaz jovem uns vinte e cinco anos muito elegante, de terno completo sapatos de cromo alemão e meias, ah, as meias... Tão lindas, brancas, claro: “hoje seriam demodé”. O rapaz se sentou e disse: “capricha”. Acho que ele ia se casar ou apadrinhar algum casamento chique. Eu não tinha as manhas de colocar os protetores de meias, “um papelão cortado em forma de triângulo encaixado entre o sapato e o pé do freguês”, na verdade eu fui saber disto depois do primeiro cliente. Destapei a lata de tinta assassina e mandei brasa, eu tremia que nem vara verde, afinal era meu primeiro trabalho e o primeiro cinquenta centavos que ganharia com minha primorosa caixa de engraxar. O moço se limitou a ler um folhetim que trazia e eu trabalhei despreocupado. Trabalhei? Não! Acabei com as meias do rapaz, já tinha lambrecado as duas meias com tinta preta, ficou uma beleza, mas o rapaz quando viu, mostrou que não gostava de arte, ficou uma fera, ainda bem que não me bateu, mas quase. Ele saiu xingando até a minha quinta geração e eu? Atrás dele cobrando a engraxação, ah, ah, ah, aí ele se zangou mesmo e me disse uma porção de verdades entre impropério e me ameaçou de cobrar as meias ao meu pai, diante de tais argumentos eu desisti de cobrar a divida. Voltei pra casa e passei à observar melhor os profissionais até aprender as manhas da graxa, Fiquei bom na coisa, no final já sabia tocar com o pano três ritmos diferentes de música, o freguês pedia e eu batia o pano no sapato no ritmo pedido. Bom o pedreiro tocou o interfone, fui abrir o portão e automaticamente abri o celular e olhei as horas oito e dezessete... Que coisa é esta gente? No meu tempo se passasse de sete horas, um minuto perdia o remundo pelado... Não, o remunerado. Pois é, fui.

Trovador

Trovador das Alterosas
Enviado por Trovador das Alterosas em 30/11/2012
Reeditado em 30/11/2012
Código do texto: T4012551
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