“Quem tem poder, que faça bom uso.”
Blog Patricia Porto - Sobre Pétalas e Preces. (www.pporto.blogspot.com)
“Até um vira-lata é obedecido quando ocupa um cargo.” Frase célebre de Shakespeare em Rei Lear. Há uma outra não tão célebre, mas não menos polêmica: “Gosto de crianças (exceto meninos)”, esta de outro escritor inglês muito reconhecido: Charles Lutwidge Dodgson ou simplesmente Lewis Carroll, autor do clássico “Alice no país das maravilhas”. Carroll já adulto não só tinha como melhores amigas “menininhas”, mas também as fotografava com permissão e apoio da própria mãe. Eram tempos vitorianos... Outro tempo, outra moral. Não tenho tanta certeza, mas talvez não tivéssemos hoje por Dodgson ou Caroll a mesma complacência, isso levando em conta a nossa atual visão de mundo. Sem respostas absolutas que não acabem sucumbindo ao fosso da temporalidade, o que importa me parece ilustrar aquilo que do passado vingou: que Caroll foi indiscutivelmente um grande escritor que tratou de nos deixar de legado seus incômodos narrativos de imagens perturbadoras e visões pra lá de ambíguas que jogam com nossos próprios e indiscretos espelhos. O cenário de sua escrita? Uma terra e uma época profundamente marcadas pela opressão do puritanismo. Caberia então perguntar o que a repressão e a tirania podem fazer de mesquinho com os homens. Frear, coibir ou iluminar sua loucura? Coroar ou cortar suas cabeças?
Num tempo não tão distante, muitas rainhas e rainhas-mães se revelaram tão insanas e perversas, tão tiranas e sanguinárias quanto os seus próprios reis-pais, acabando com a esperança de que mulheres no poder sempre nos salvariam de guerras atrozes, perseguições vingativas e derramamentos de sangue. Novamente Shakespeare nos aponta a montanha que há por trás do iceberg ou por trás de um desejo oculto e freado. Lady Macbeth, de Shakespeare, tem a força e a gula dos grandes tiranos. Em toda minha incursão literária nunca li tanta crueldade, tanto ímpeto feroz, marcado pelo orgulho do ódio e o delírio da ambição:
“Vinde, espíritos sinistros
Que servis aos desígnios assassinos!
Dessexuai-me, enchei-me, da cabeça
Aos pés, da mais horrível crueldade!”
Dessexuai-me... Ninguém melhor que Shakespare para traduzir a vontade do poder, ninguém melhor que Freud para interpretá-lo. O desejo cruel de Lady Macbeth, a inveja de Iago, a persuasão de Cássio, a dominação de Petrucchio, o fantasma de um pai, a manipulação da mãe, Hamlet e a tirania se contrastando com a palidez e a fragilidade de Ofélia, a ninfa no lago. Que morra, por certo.
Poderíamos nas aulas de literatura falar de muitos “complexidades” do humano e também das nossas tantas fraquezas de caráter, das nossas absurdas pequenezas... Mas quem quer ouvir isso em sã e feliz alienação afortunada? Fiquemos por ora na superfície, na superfície porque não causaremos mal estar. Enfiar o espinho na ferida é para os loucos, os sem juízo, os vadios, os amorais. Não funciona, eu sei. Continuaremos sempre a desejar a morta do lago, a quietude do poço, como o "silêncio dos inocentes".
Fiquemos na sustentável ignorância do ser e não nA insustentável leveza do ser, belo filme de Philip Kaufman. Como protagonistas, vemos os engajados Juliette Binoche e Daniel Day-Lewis, personificando o casal Tomas e Tereza numa Praga invadida pelos Russos, naquele tal ano de 1968, o ano que não terminou segundo Zuenir Ventura. Baseado na obra de Milan Kundera, o final do filme destroça nossas esperanças de ver aquele final bacaninha, com o casal apaixonado vivendo numa cabana da montanha. E destampa o vulcão para causar fraturas. Tão difícil assumir a ferida narcísica exposta do nosso lado sombrio... Revelar o asqueroso, o feio, o estranho, o desumano, o esquizoide – e o finito. Como nos discos vinis, muitos tentam tocar apenas o lado A, aquele com as melhores paradas de sucesso. O lado B, no obscuro permanece, reprimido numa cortina de fumaça como se seguisse a Lei de Murphy, na consequência inevitável da opressão: caindo para baixo, no baixo, nas baixezas do grotesco, escondido embaixo do tapete da terra, como As Aventuras de Alice Embaixo da Terra, primeiro nome dado ao livro de Carroll.
E pensando melhor, afinal, não importa tanto distinguir o lado A do B, porque no fundo ou raso, eles estão mesmo misturados, e se o homem não descobre sua dimensão humana e finita, ainda mais sofrimento deixará de herança aos outros do advir, porque deixará de apostar na dimensão misturada de sua natureza primária. Quando olho para a nossa História recente fico pessimista e isso não tem vínculo com a minha visão política de mundo, mas sim com a minha visão humana de mundo. “Para onde caminha a humanidade” depois do Tibete, da faixa de Gaza, depois do Iraque, das ogivas, das sanções, dos milhões que morrem de AIDS num continente imenso esquecido? Não sei. Fico com medo de me tornar um daqueles anões da Branca de Neve, o Zangado, e virar alvo da globalização da informação. Ranzinza, com idiossincrasias irrecuperáveis: toc, síndrome do pânico, TPM, manias de grandeza, rabugenta e boca porca. Se eu me pergunto para onde caminha a minha humanidade? Pergunto. E não tenho resposta que não seja ficar com a minha fiel perplexidade.
No nosso reino da felicidade de araque e de gente tão cordial e conservadora, se a ficha da hipocrisia não cair, que tal ficarmos com aquele velho adágio: "Quem tem poder, que faça bom uso"? Esse pode servir...
No “The End” talvez encontremos a frase de efeito para a contemporaneidade, como Boris Yellnikoff, personagem neurótico e pessimista do filme de Woody Allen. Sim, é possível, “Tudo Pode Dar Certo”.
Patricia Porto