RESPEITA A PULIÇA
Quem já se mudou sabe que uma mudança começa semanas antes do caminhão chegar e termina uns dois meses depois que descarrega na nova casa. Desde desmontar e empacotar os bregueços até desempacotar e montar tudo novamente bote tempo, suor e lágrimas pelo que se perdeu, quebrou e arranhou. Estávamos no segundo dia da mudança. O básico já tinha encontrado canto. Certos de que os móveis iriam se acostumar com seus novos lugares já nos sentíamos recompensados por todo esforço. Agora era a vez das flores, dos jarros e adornos. Minha esposa deu conta que precisava de um pouco de areia para um dos jarros da varanda. Pediu-me que fosse comprar areia. Comprar areia?
Ora comprar areia, pensei. Ela não tem noção de que areia se compra no metro, nas carradas de caminhão ou nas carroçadas dos depósitos do bairro. Uns três quilos de areia resolveria o nosso problema, definitivamente eu não iria comprar areia. Não é saudável desobedecer à mulher, mas nem que eu apanhasse não iria comprar. Olhei pela janela e vi a construção de um enorme supermercado vizinho ao nosso novo condomínio. Havia uma montanha de areia que já escorregava pela calçada. Era um domingo, a obra estava parada. Peguei dois saquinhos de plástico, desses de supermercado mesmo, pus um dentro do outro e desci do jeito que estava, de calção, camiseta, descalço, sem lenço e sem documento.
Chegando lá, olhei pra um lado e outro, não tinha um pé de pessoa na rua. Abaixei-me e de cócoras enchia a mão de areia e colocava no saquinho. Nesse momento, abaixado do jeito que estava, vi quatro pneus de motos que pararam ao meu lado. Uma mão segurando o saco e a outra cheia de areia, fui levantando a cabeça lentamente, enquanto meus olhos descortinavam a visão macabra de dois policiais do RAIO, fortemente armados. Gelei. Petrificado, mumificado, mil pensamentos tomaram de assalto a minha cabeça em estado de fusão. Deu uma vontade tão grande chorar e ao mesmo tempo outra vontade tão grande de correr. Mas o que eu mais queria mesmo naquela hora era ser invisível. Desejei que o monte de areia deslizasse sobre mim, mas percebi que apenas um punhado denunciador escorregava entre meus dedos e um medo, medo não, um pavor, tomou conta de mim e já que estava de cócoras... quase.
Eles imóveis, calados e eu calado estava, calado fiquei, mas meu pensamento falava mais que a mulher da cobra. Pensei em me explicar, em me ajoelhar e pedir perdão por estar roubando areia. Naquele instante eu me senti o maior criminoso da face da terra. Quem sabe pudesse convencer aquelas estátuas de policiais motorizados que eu não estava roubando areia, só estava... pedindo emprestado. Pensei em pagar a areia, mas lembrei-me que não tinha trazido carteira, nem documentos. Pensei em jogar areia nos olhos deles e sair em disparada, pensei em fingir de morto, de surdo, de mudo, de cego, de abestado, qualquer coisa. Pensei em...
- O senhor viu um rapaz de bermuda preta e camisa amarela passar por aqui?
Foi o que um deles disse após levantar o visor do capacete.
Senti que o sangue voltou a correr nas minhas veias. Senti que tinha prendido o fôlego por não sei quanto tempo, talvez umas duas ou três horas. Você pode achar exagero e dizer que foram apenas dois segundos, mas foi exatamente essa a impressão que tive. Conferi minhas roupas. Não, não estava de bermuda preta e camisa amarela. Ufa!
- Vi não, senhor. Respondi.
Eles foram embora junto com o barulho das motocicletas.
Olhei para o montão de areia, o sacana ria de mim.