A Casa da Tia Rosa



Quem passa pela Nelson de Sá Earp, antiga Rua João Pessoa, hoje em dia verá no final da rua uma churrascaria muito chique. Em cima, um casarão do início do século passado. Quando eu era pequena, naquele casarão morava a Tia Rosa, e sob ele, funcionava um restaurante russo, cujo nome não me atreverei a soletrar.

Acho que a Tia Rosa sempre foi muito velha, pois desde que eu lembro de mim mesma, ela assim o parecia. Tinha uma irmã que morava com ela no casarão, a Tia Nanina. Ela era boa, mas não tinha a doçura da nossa Tia Rosa. Tia Nanina era casada e tinha filhos e netos, alguns morando no casarão, mas a vida amorosa de Tia Rosa era um mistério. Minha mãe contava que, quando jovem, ela vivera um amor impossível e jamais se casara.

Com certeza, Tia Rosa era uma fada encantada.

Não enxergava muito bem, mas sempre respondia quando passávamos pela rua e acenávamos para ela. Duvidávamos que ela conseguisse distinguir nossa fisionomia à distância...

Eu adorava visitar a Tia Rosa. O casarão era muito grande, paredes muito altas, chão de tábuas corridas, janelas imensas. Nos fundos, havia uma escadaria que se embrenhava morro acima, conduzindo a um velho chalé abandonado, cercado de pessegueiros. Apesar de localizado no centro de Petrópolis, aquele pedaço de terreno era afastado , silencioso e totalmente verde. Eu gostava de ir lá, pois sentia que aquele lugar era mágico, mas tinha medo de me aproximar do chalé, por achar que ele fosse assombrado.

Tia Rosa tinha muitos, muitos gatos. Um quarto da casa pertencia a eles. Apareciam e iam ficando, todos gatos enormes e gordos, cada qual com sua personalidade distinta. Um deles ficava sempre na sala de jantar, pois não andava- tinha a bacia quebrada - limitando-se a se arrastar pela casa com as patas da frente. Era o mais lindo de todos, um imenso gato malhado preto e branco com penetrantes olhos verdes. Acho que ela tinha mais de vinte gatos. Mas por incrível que pareça, não se sentia o cheiro de urina característico de lugares onde moram muitos gatos.

Havia uma edícula nos fundos da casa, onde Tia Rosa e Tia Nanina às vezes nos recebiam. Era composta de uma grande cozinha no primeiro andar, e um quarto e um banheiro no segundo. Naquela cozinha, elas preparavam seu perfumado café no coador de pano, acompanhado pelo bolo de maçãs, o sol entrando pela janela, enquanto distribuiam suas xícaras coloridas pela mesa. As xícaras pertenciam a vários serviços diferentes: algumas eram de bolinhas, outras tinham rosas ou flores pintadas à mão, outras, apenas um fio dourado em volta da borda. Eu e minha irmã às vezes disputávamos para ver quem usaria a xícara de bolinhas vermelhas. 

Também disputávamos quem comeria a massa de bolo crua que ficava no fundo da panela.

Eu gostava de recostar-me na velha cadeira de balanço e ficar escutando as conversas dos adultos. Falavam de pessoas que eu não conhecia, pintando retratos com palavras, as imagens se formando em minha mente. Falavam de outros países - principalmente da Itália, de onde elas vieram, e de parentes que tinham por lá. 

Conversavam sobre política, atualidades, novelas, livros. Sabiam de tudo. Tia Nanina era fã do Rambo e assistia a todos os filmes dele.

Fui crescendo, e comigo, minhas responsabilidades e compromissos, e com isso, as visitas foram rareando.

Anos depois, quando eu já era uma moça de vinte e poucos anos, Tia Nanina faleceu, e algumas semanas depois, Tia Rosa. 

Ficou o som da sua voz. Seu bolo de maçãs. A xícara de bolinhas. Os gatos. A meia-calça cor da pele, muito grossa. o casaquinho preto. Os sapatos sem saltos. O cabelo liso, preso em um coque no alto da cabeça. Os óculos de lentes muito espessas. Conversas a volta de uma mesa de cozinha, banhadas pelo sol e aromatizadas por café.

Às vezes me pergunto se o chalé ainda existe, e se por um acaso, ela não mora por lá...





Publicado em: 22/04/2009 11:25:08
 
Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 28/11/2012
Reeditado em 24/10/2014
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