PASSEANDO PELA SUÉCIA - II

17.11.2012 - Terça-feira. No restaurante do IKEA o sujeito comprou batatas fritas, almôndegas, purê de batata, geléia de cranberries e um copo de leite cheio até até a borda. Não foi uma surpresa desnorteante porque eu já sabia que os suecos almoçam e jantam tomando leite. Naquele momento quase todos no restaurante bebiam leite, às vezes mais de um copo cheio, enquanto comiam. Mas até eu e Ana chegarmos a esse colosso comercial que é o Ikea passamos por uma verdadeira odisséia digna de romances de aventura.

O dia estava lindo, quase claro, com previsão de chuva fraca para bem mais tarde, a temperatura se mostrava agradável, por isso decidimos fazer a caminhada de cinco quilômetros até o mundialmente famoso universo comercial chamado IKEA. Afinal de contas seria nossa malhação, nosso exercício físico do qual já nos vemos sentindo falta, habituados que somos aos esforços proporcionados pelas atividades diárias na academia, no Brasil. Pesquisamos o roteiro no Google Maps, traçamos no mapa físico as ruas por onde passaríamos e ligamos o GPS, iniciando então nossa aventura. Sim, foi uma verdadeira. surpreendente e inesperada aventura que nos fez, lá pelas tantas, a meio caminho, perceber que talvez tivesse sido melhor ter ido de ônibus e deixar a caminhada saudável para outros dias. Isso, no entanto, somente muito tempo depois passaria por nossa cabeça.

Vejam só o que faz o destino conosco, pobres viventes: a primeira rua por onde deveríamos começar a jornada impetuosa se encontrava interditada. Resolvemos, assim, ir por uma rua mais distante, pensando que lá na frente retornaríamos à indicada pelos mapas. Ledo engano! Não foi bem assim, tratava-se de enorme avenida e somente lá na frente pudemos retomar o caminho julgado certo. Bom, aí sim notamos que o GPS indicava sempre estreitas ruas por onde apenas pedestres e ciclistas circulavam. O pior de tudo foi ter certeza de que o GPS só nos levava por ali, independente de o mapa em nossas mãos não registrar as tais artérias cada vez menores, apertadas, esquisitas, desertas e aterradoras. Aqui e ali um ciclista solitário, uma ou duas mulheres apressadas, o silêncio e mais silêncio, parecia que deixáramos a cidade e havíamos caído numa espécie de pesadelo real, porém sem nenhum perigo, embora cheio dessa angústia tão característica dos sonhos tristes, das estradas melancólicas, das tristezas abandonadas pelos sorrisos. E o GPS nos mandava seguir em frente na maior indiferença, firme em seu propósito estranho, conduzindo-nos para o que me pareceu, de fato, fantástico labirinto perdido no tempo, no espaço, abandonado pela vida, esquecido até mesmo pelo mais singelo olhar de misericórdia. Apesar de tudo isso, víamos casas e mais casas ombreando com edifícios não muito altos, daqueles tipo caixão, mas caixão sueco, claro, contudo eram casas e apartamentos herméticos, sisudos, circunspectos, silenciosos, sem nenhum rastro de humanidade, com muitos e muitos carros parados ao lado, à frente, atrás, árvores desfolhadas pelo outono e o nada em cada curva, em cada ruela entre eles, no ar sem pássaros, no chão úmido atapetado por folhas mortas pela estação que as faz se desfazerem em adubo. Em todo o trajeto angustiado só tivemos a repentina e atônita surpresa de ver duas crianças, agasalhadas da cabeça aos pés, brincando sozinhas num quintal aberto e triste, rindo aquela espécie de riso desprovido de graça, figuras ingênuas num filme de suspense onde a qualquer momento algo macabro aconteceria. Só que estamos na Suécia, país educado, civilizado, rico, em que coisas desse tipo jamais ocorrem, só em filmes americanos mesmo.

E lá íamos nós em busca de nossos objetivo, o quadro ficando pior de segundo a segundo, o tempo escurecendo, o deserto aumentando, o cenário se tornando sempre o mesmo onde que que estivéssemos. Cada vez que entravávamos em uma daquelas ruazinhas estreitas ela parecia ser maior do que a anterior, como se andássemos sem rumo e não houvesse como chegar a lugar nenhum. Será que andávamos em círculo ou aquelas ruas não teriam fim, como num conto de fadas, na estória de João e Maria? Ainda assim o GPS continuava a dizer-nos para seguir em frente, entrar à esquerda, em frente novamente, entrar à direita e andar, andar sem parar.

Quando começou a chuviscar, pronto, não deu outra, eu me apavorei, isso porque não havia um abrigo sequer onde pudéssemos permanecer até que a chuvinha terminasse. As casas e prédios perdidos e esquecidos naquele fim de mundo circundado por mato baixo e estradinhas estreitas próprias para pedestres e ciclistas estavam fechadas, aparentemente sem ninguém e não ofereciam condições para nos proteger do chuvisco que caía e começava a molhar nossos casacos, gorros, luvas e sapatos. E agora? Todavia, malgrado todo esse sufoco, o GPS persistia afirmando para irmos "na direção da venta". E fomos, Ana consultando a todo tempo o mapa e o GPS, eu me esforçando para não gritar enlouquecido pelo silêncio, o ambiente deserto e a chuvinha intermitente que fazia o meu nariz se transformar num picolé.

Foi então que começaram a aparecer à nossa frente pequenos túneis, meu Deus onde estávamos? Lembro que de vez em quando uma viv'alma ou outra aparecia no caminho, um que outro ciclista, tanto homem quanto mulher, atravessava nossos passos, porém eu não via perspectiva promissora em nenhum instante à medida que prosseguíamos, a chuvinha insistia em cair, não víamos outra paisagem além das casas e apartamentos fechados e sem vida, o caminho cada vez mais longo, a perder de vista, e a quase certeza de que, reconhecendo ou não, provavelmente nos perdêramos.

Mas o danado do GPS não parava de dizer que continuássemos naquele rumo. Num dos túneis deparamos com três jovens segurando suas bicicletas, talvez aguardando a chuva passar, e Ana, vejam só, receou que eles pudessem ser marginais ou algo semelhante ali à espreita para nos assaltar, sabe-se lá. Outra vez lembrei que estamos é na Suécia, não num país do Terceiro Mundo. Surpreendam-se, eles educadamente saíram de onde estavam para nos dar passagem.

Aonde ia dar aquele labirinto interminável? Às vezes, ao longe, enxergávamos carros, não muitos, indo e vindo, depois tudo voltava ao silêncio, à modorra, ao deserto, ao nada do nada. Sinceramente, o desespero apegava-se a minha alma, embora eu não dissesse a Ana, ela sim otimista, obedecendo aos comandos do GPS, convicta de alcançarmos, finalmente, o lugar para onde íamos. Necessário, a bem da verdade, registrar que, de quando em vez, alguém chegava de carro, estacionava, descia, pegava suas compras, fechava o carro e desaparecia. Mas foi acontecimento tão raro e insignificante, nem valeria a pena lembrar.

Afinal, depois de tudo isso, do cansaço, da fadiga, do temor tomando conta do meu coração, do pesado silêncio em torno de nós, da chuvinha molhadeira, das inúmeras ruazinhas, uma maior do que a outra, mais comprida, mais interminável, Ana avistou, ainda um pouco distante, é certo, mas sobremaneira consolador, o nome IKEA. O ocaso cobria o céu de breve penumbra, o anoitecer se vislumbrava, mas nós dois rimos, meio que dançamos, nos fotografamos, nos abraçamos, nos beijamos felizes porque, graças a Deus, após essas inomináveis vicissitudes, chegáramos, sim, o GPS estava certo o tempo todo e nos levara, enfim, ao nosso objetivo.

Gilbamar de Oliveira — em IKEA Malmö

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26.11.2012 - Segunda-feira. Disseram-me no Brasil que aqui na Suécia os idosos se viram sozinhos, prescindindo da ajuda e da gentileza dos mais jovens. Que eles não aceitam que lhes deem o lugar nos ônibus ou nas filas. Portanto, ficamos avisados para não sermos gentis demais no sentido de quebrar essas regras tão naturais para nós. Mas a teoria nem sempre corresponde à prática, mormente em situações extremadas e porque tudo depende também das circunstâncias envolvidas. Hoje, indo de ônibus para a Central Station, vi acontecer justamente o contrário do que me foi informado. O coletivo já se encontrava sem vagas quando entraram duas senhoras deveras entradas em anos, então avistei dois jovens se levantarem de seus lugares e oferecerem para elas, que prontamente, sorridentes e agradecidas, aceitaram e sentaram, passando a conversar animadamente enquanto os jovens ficaram de pé até a parada deles. A atenção e amabilidade para com os idosos, pelo que presenciei, certamente são atitudes universais e muito bem vindas para eles.

Quando visitamos outros países, por uma questão de civilidade e educação, costumamos ter o maior cuidado com os nossos gestos, a maneira de falar, a sonoridade do riso, etc. Em Paris vimos inúmeras vezes as pessoas andando apressadas por suas avenidas, as mais charmosas inclusive, comendo seu lanche ou almoço sem se importar com os transeuntes em derredor. Portanto, lá nós também agíamos dessa forma tranquilamente. Na Suécia preferimos observar o comportamento dos seus habitantes a fim de tomarmos uma posição adequada. Por esse prisma, observamos, pela terceira vez, duas jovens muito bem vestidas, em lugares diferentes, descascando uma banana, na maior simplicidade, no meio da multidão, e passando a comê-la sem o menor pudor. Na Central Station novamente avistamos uma senhora se servindo, com a mão, duma quentinha que lhe trazia o jantar.

Visitamos a Igreja de São Pedro, na praça Stortorget, templo suntuoso, bonito, de arquitetura centenária imponente, lugar silencioso e bom para meditar e refletir. Ao sair, já a noite sueca chegando, a árvore de natal estava acesa. Uma jovem mexia alguns controles a poucos metros do enfeite e mexia com as cores das luzes enquanto o namorado a fotografava. Ao longe, fingindo amenidades, esperamos que saíssem e Ana foi, por seu turno, brincar com os mesmos controles para fazer as luzes se tornarem multicoloridas e dar novos tons à imensa árvore.

Em nossos planos consta uma ida a Estocolmo, a capital da Suécia, daí a razão de nossa ida à Central Station. De lá saem e chegam trens de vários lugares e regiões escandinavas, principalmente suecas. As passagens são vendidas principalmente nas muitas máquinas espalhadas ao longo da estação. Fomos a uma delas. Escolhemos o idioma inglês e começamos, meio atrapalhados com a quantidade de exigências que nos eram feitas. Por instantes, voamos na doideira sem entender muito bem determinados itens, por isso refizemos a digitação, rimos de nós mesmos, recomeçamos, colocamos o cartão de crédito internacional, não deu certo, tentamos novamente até que, finalmente, depois de muitas risadas discretas, gargalhadas contidas sob os olhares inesperados de pessoas indi e vindo, conseguimos. Nossas passagens, por fim, fluíram como água da estreita bocarra acima da silenciosa e gelada máquina.

Ao voltarmos, a temperatura beirava os cinco graus e sensação térmica de um.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 27/11/2012
Reeditado em 21/01/2013
Código do texto: T4008369
Classificação de conteúdo: seguro
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