Negligência Médica: As Barbáries de um Ginecologista Rei
Este é um texto simples, resultado da minha tosca ignorância. Ignorância no sentido de pura incompreensão. Não compreendo certos fatos desta sociedade racional. Pessoas racionais demais, normativas demais, geniais demais. Meu cérebro não se desenvolveu mais que uma ervilha. Confesso: sou um anencéfalo funcional.
Não consigo compreender, caro leitor, como um médico, do tipo que se autodenomina ‘doutor’ sem saber o que é doutorado, que usa estetoscópio no pescoço, terno, gravata e ganha mais de 20 mil reais por mês (ao passo que grande parte da população brasileira vive abaixo da linha da pobreza), transbordando de arrogância, boçalidade e estupidez, erra por negligência. A palavra negligência, aqui, é usada para fazer referencia a falta de respeito, de escrúpulo, de empatia, de entendimento e de vergonha na cara. Não compreendo estes médicos com cérebros maiores que o meu.
Não condeno o erro. A falha é absolutamente natural, na medida em que lidamos com subjetividades. O tênue é relativamente estreito entre o erro e o acerto. O que me causa tremores de ódio é a negligência, e suas nefastas consequências. Pior ainda é o erro seguido de outro erro, em escalas. Causa-me náuseas quando certos médicos e outros profissionais de saúde operam seu desprezo sobre vidas que consideram vazias. São vidas que não valem nada, vidas nuas, como diria Giorgio Agamben. Negligenciam e desprezam mulheres, negras, pobres, prostitutas, homossexuais, travestis e migrantes. Um desprezo pelos “não normais”, pelos desviantes das condutas socialmente impostas por uma sociedade misógina, sexista, machista, patriarcal, preconceituosa, discriminatória e violenta.
Minha revolta é resultante de acontecimentos que me embrulham o estômago. O cenário é trivial: uma cidade chamada Cruz Alta, onde imperam reis e rainhas, patrões e capangas, cavaleiros e príncipes, em pleno século XVI. Um poder instituído que, segundo Foucault, é exercido como prática social, historicamente constituído, com múltiplas formas de exercício e legitimação. Uma província onde meia dúzia de pessoas (ou famílias) comanda o comércio, os hospitais, a prefeitura e a agricultura. Todos os outros que lá habitam recebem esmolas, e aplaudem e elegem tamanho desprezo.
Lá, um médico ginecologista, prata da casa, diagnosticou (médicos ‘doutores’ gostam de diagnósticos), um câncer de útero em uma mulher “anormal”: pobre, obesa, negra e com quatro filhos. O tratamento de um câncer pelo SUS, como todos sabem, no século XVI, demora uma eternidade. Mas o doutor, compenetrado na sua competente bestialidade e idiotice, adotou todas as condutas cabíveis e concebíveis pelo dicionário médico padrão. Utilizou até mesmo seu CID 10. Seu esforço e empatia por aquela vítima saltavam aos olhos. Sua simpatia caricata bradava dos insultos que proferia contra aquele corpo. A mulher, semianalfabeta, foi obrigada a fazer punções venosas e arteriais, exames laboratorias, de imagem, radiográficos e biópsias. Que belo tratamento. Mas o resultado é um só: Câncer! A vida terrena acabou. A morte foi anunciada. Uma morte lenta, ao passo do SUS, e do seu médico. Decidiu-se retirar o útero. O que significa um mero útero? Do que vale um útero corroído por câncer? O que é um corpo obeso e pobre? Pois bem. Eis que, na mesa do bloco cirúrgico, com a mulher escancarada, nua, sedada, maltratada, é realizado outro diagnóstico estritamente médico: a mulher estava grávida. E mais: gesta de cinco meses. Precisou de uma laparotomia para diagnosticar (outro diagnóstico médico) uma gravidez. Tirariam um ventre que daria vida a um filho. Um ventre canceroso que daria vida a uma vida. Ual! A mulher é aberta de ponta a ponta com um bisturi afiado, suas têmporas arregaçadas, e logo fechada, com uma sutura porca, onde os pontos são pregados como botões de suspensórios. Dali gerará uma cicatriz nefasta. Uma cicatriz na alma, que dificilmente fechará.
A notícia circulará no noticiário local, algumas pessoas com cérebro de ervilha comentarão, outras escreverão, outras não darão a mínima. Era mesmo só mais uma. Acontecerá com milhares. A sociedade dará as costas para esta mulher, e para todas, que continuarão sofrendo caladas. O mal, nesta cidade, está velado. Enquanto isso, na província do século XVI, as rainhas continuarão frequentando salões de beleza e jantares plebeus. Os reis continuarão desfilando de jalecos brancos e charretes Mercedes importadas. Os coronéis continuarão comandando, os miseráveis implorando, os mendigos pedindo, os doentes morrendo e os médicos errando.
Essa é só mais uma triste ficção de um escritor maldito, tirando todos os fatos reais.