As Boas Lembranças não Morrem
Ele era muito alto. Branco, cabelos crespos e pretos. Seu rosto era cheio de espinhas, mas seu sorriso envolvia a todos numa simpatia ímpar. Tinha uma barbicha muito engraçada. Mas o que mais me chamava atenção no físico dele era os pés com calcanhares bem vermelhinhos e uma sandália preta antialérgica. Seu sorriso iluminava a casa quando chegava de Irecê, no final de semana. Era eu que lavava seu uniforme de contínuo do banco do BANEB. Sempre deixava um dinheirinho para mim. Adorava ler gibis. Sentava-se na janela e sempre me queria por perto para conversar ou simplesmente mexer nos meus cabelos.
Eu tinha doze anos. Ele tinha dezenove. Um dia uma menina na rua queria me bater. Neste dia, num final de semana, por onde eu andava ele me acompanhava me protegendo. No seu primeiro salário abriu uma caderneta de poupança para mim que caducou porque ninguém a alimentou.
Ele trabalhou em muitas empresas antes do banco. Foi até vendedor de livros. Recordo-me que num final de semana trouxe para casa seus amigos para a gente conhecer. Foi uma festa neste dia.
Todos gostavam dele. Todas as tias, tios, todos os primos e primas, toda a vizinhança, todas as crianças, todos os colegas de trabalho e todos os colegas de classe. Na época, ele fazia o segundo ano de contabilidade à noite no antigo Colégio Dermi – Luís Viana Filho. Trabalhava no banco de dia e estudava à noite. Ele era muito inteligente e muito religioso; rezava o ofício às cinco da manhã, frequentava os encontros religiosos no final de semana. A música “No Egito escravo eu fui,” aprendemos com ele. Tinha uma voz encorpada, muito linda. Ele era tão bem-humorado. Não me lembro de ter presenciado um momento de raiva, de ira. Parecia estar sempre de bem com a vida. Quando visitava alguma tia, abraçava e a pegava no colo. Era uma verdadeira festa sua presença na vida de todos nós. Já fazem trinta anos que ele se foi, mas ainda hoje aqueles que o conheceram, que conviveram com ele não esquecem de sua presença alegre, leve, de alguém de bem com a vida, íntegro. Um dia presenciei uma discussão dele com um dos irmãos. Ele dizia chorando: “mãe, apesar de tudo, eu gosto dele assim mesmo.” Neste dia pai não jantou, deixando toda a comida no prato olhando para os dois com olhos cheios de lágrimas. Todos nós ficamos abismados com aquela desavença. Depois tudo se esclareceu, apenas desentendimentos de irmãos, com uma grande dose de fermento.
No dia vinte e três de junho de 1982, eu, minha irmã, Luzinete, meu irmão, Claudionor, fomos passar o São João na roça de minha irmã, Elizabete. Naquela noite eu não conseguia dormir, não sabia o porquê daquela angustia. Ás cinco horas da manhã chegou um carro do nosso vizinho, seu Osvaldo. Levaram a gente de volta para Aguada Nova. Havia muitos cochichos. As pessoas falavam bem baixinho para que eu não escutasse. Achei mais estranho quando minha irmã, Elizabete, e meu cunhado, Adonias, também subiram no carro, alegando que estavam com saudade de minha mãe. Ouvia frases soltas, desconexas, do tipo, : ele tá bem, está no hospital.
Quando cheguei à rua onde morava, um nó na garganta se formou. Tinha alguma coisa de muito ruim. As pessoas diziam que ele estava bem. Por que tanta gente em frente à casa, então? Eu desci do carro e vi minhas duas irmãs aflitas ao entrar em casa. Corri para ver o que tinha acontecido. Ele estava morto. Um caixão na sala e as pessoas em volta, chorando. Minha mãe alisava, com carinho, os cabelos dele. Quando me viu, ela me abraçou e dizendo: O seu irmão, que te colocava no colo, Deus levou... Por que eles não me disseram? Foi a primeira vez que experimente esta dor, que não tem remédio. Um choro diferente da dor causada pela frustração, pela raiva, pela dor física. Era uma dor insuportável que parecia não ter remédios. Os dias que se seguiram até o sétimo foram difíceis. Lembro que nem conseguia fantasiar como costumava, como era natural da mente de uma adolescente que acha que a vida é um conto de fadas, que a morte não existe, que as boas pessoas são eternas e a vida é uma festa. A mente estava totalmente bloqueada pela dor. Não tinha espaço para outros pensamentos. Era a realidade da perda. O tempo foi passando e a dor arrefecendo, sendo substituída pela saudade, pelas boas lembranças.
O nome dele era Galdino. O terceiro filho de minha mãe e do meu pai. Morreu em um acidente de carro.
Trinta anos depois, ainda lembro de meu irmão e de seu perfil diferente, de alegria a todo instante.
Ainda bem que as boas lembranças não morrem.
Luz Ribeiro, 25 de novembro de 2012