O REDENTOR ARGENTINO
O futebol é uma religião politeísta. Não há apenas uma divindade a ser adorada. Há um panteão com deuses de diversos sotaques. Por isso acho desnecessária a infinita pergunta: “Quem foi melhor: Pelé ou Maradona?”. Ambos são deuses do futebol. Claro que Pelé é o Zeus do Olimpo. Mas o povo argentino encaminha todas as suas preces, com fervor incomparável, a Diego Maradona. Se eu fosse argentino faria o mesmo.
Maradona merece cada vela acessa, cada lágrima, cada coração idólatra. Afinal, é o símbolo de todo um povo. Mais que isso: foi a redenção da Argentina num momento que a bandeira era coberta por cinzas. Nenhum cérebro brasileiro consegue dimensionar isso em sua exatidão. Se Pelé conseguiu impor intervalo a uma guerra, Maradona foi além: venceu, quase que sozinho, uma guerra para a Argentina. A única guerra que interessava: contra os vilões, os algozes ingleses. Um pouco de história: em 1833 a Inglaterra toma à força as Ilhas Malvinas da Argentina. Em 1982, o governo argentino tenta retomar o arquipélago dos ingleses, por força dos canhões e rifles. Sangrenta batalha. Aproximadamente mil mortos. Derrota humilhante para a Argentina.
O jogo contra a Inglaterra na Copa do Mundo, em 1986, no México, não é uma partida de futebol. É uma guerra entre duas nações tendo como front um campo de futebol. É o orgulho de dois países que está em jogo. Argentina bate por 2 a 1 e segue na Copa. Maradona faz os dois gols. Enfatizo: não faz dois gols. Faz os dois gols! O mais belo de todas as copas e o mais polêmico de todas as copas.
No primeiro, pega a bola em sua trincheira e desafia toda a tropa britânica. E vence! Como um Rambo portenho, Dieguito derruba todos os oponentes com dribles desconcertantes até chegar ao goleiro, também driblado. Dribla as leis da física, percorrendo o corpo dos oponentes com a bola submissa aos seus pés. A bola, como um definitivo projétil no coração dos ingleses, morre suave no fundo das redes. No outro gol, completa com a mão para vencer o goleiro. Suplanta as leis do futebol. A mão de Deus, teria dito. Não há consenso ainda se foi de Deus ou do Diabo. Certo é que não foi mão humana.
Nunca um jogador foi tão decisivo para uma seleção em uma Copa como Maradona em 1986. Não envergava apenas o uniforme de um time. Vestia, com todas as glórias e fracassos, a pele de um povo inteiro. Seu discípulo Messi, o atual Messias do futebol, sabe que talento nenhum, genialidade nenhuma, superarão a proeza de Maradona em 1986. Fez um país, humilhado, derrotado, sacudido por uma ditadura militar, dar um golpe mortal no seu maior inimigo. Maradona não deu uma simples taça de campeão do mundo ao seu país. Sua proeza foi além: deu ao povo argentino o direito de novamente ter uma alma.