PORTA DE IR EMBORA
Um trabalhador, morador em uma cidade na Índia, divide seu tempo entre o sal e as orientações religiosas. Não sacrifica animais e jejua fortalecendo seu espírito. O homem não deve se sentir prisioneiro quando sabe poder ser livre, mesmo vivendo entre paredes, janelas, portas, não deve esquecer nunca de viver entre as nuvens porque o piso onde seus pés caminham, pode ser em casa ou na rua, é a condução que o deixa e o leva pelo tempo, nunca, sem antes, contemplar o futuro, como alguma coisa construída no passado, quando as crianças espalhavam alegria pela casa e cresciam como crescem as sementes, antes de transformarem-se em grandes, ou até pequenas árvores.
Um trabalhador, morador em uma cidade na Rússia, rasga as fotos da esperança, fotos com o rosto de quem sonhou e agora apenas dorme, já não bebe os “frutos” da vodka, mastiga o caroço do tédio. Pensa em edificar uma nova praça, com mais leitura e menos entretenimento imbecil, algo que traga consciência crítica e um novo-velho modelo, sem arbitrariedades e execuções, próximo do progresso, de roupa limpa e passada e sem temores advindos de contas atrasadas e herpes mal curadas.
Um trabalhador, morador em uma rua no Méier, percorre alguns metros acima da rua onde mora, olha a sala vazia da antiga casa, fecha os olhos mapeando os acontecimentos. Conhece a geografia dos cômodos, acaricia cada taco solto e sorri dos mais resistentes. Vai saindo dos quartos e fechando as portas. Cada porta que fecha é uma página da sua história que é escrita. Se aproxima da “porta de ir embora” e tenta inventar um ritual qualquer: Uma despedida italiana, com acenos e lenços brancos; Um drama mexicano, regado com tequila; Uma saída à francesa, ao som da Marselhesa; Uma corrida grega, maratona em Atenas; Um discurso cubano, entremeado pela fumaça do charuto; Uma coreografia espanhola, na arena, em Madri; Uma comédia americana, Luzes da cidade; Uma revolução comunista, a vitória bolchevique.
O trabalhador desiste do ritual e “faz com as mãos”. Olha para dentro da casa e é retribuído com um abraço de todos que ali viveram sob sua regência. E o velho maestro náufrago sobe em seu bote e atravessa o oceano, começa a cercar seu novo território e a distribuir as ferramentas, retoma o caminho, já curado e mais corado, pronto para enfrentar novas tempestades.
...Liguei o dia todo, ninguém atendeu.
Cheguei do trabalho a bati na porta:
Ei! Será que alguém aí pode sair para brincar comigo...?
Ricardo Mezavila