O pianista de Stalingrado

Em dezembro de 1942 a ofensiva alemã estava sob o centro de comando da Operação Barbarossa e a batalha de Stalingrado já apontava números alarmantes de perdas para os dois lados. O exército alemão movido pela inteligente loucura do “Führer” bombardeava sem piedade praças e outros alvos civis. Do outro lado os russos numa defensiva quase suicida pelo bigode do Stalin se viravam pra conter o avanço. Uma guerra à parte de proporções épicas. Uma batalha que se perpetuou pela história em rodas de vodka ou em fotos de família.

Na noite do dia 15 uma patrulha alemã vasculhava uma fábrica abandonada em busca do famigerado Vassili Zaitsev, o fantasma russo atirador que sozinho já tinha levado vários oficias do Adolfinho pra cova. O procedimento era padrão, movimentos calculados, alerta máximo e medo, muito medo. Uma bala poderia surgir de qualquer lugar e estragar o uniforme de alguém. Pior, capacete.

Saíram do recinto dando no Volga e foram caminhando pela margem. Alguns passos e pôde-se ouvir uma música. Não, não era nenhuma vitrola, era música viva, assim pensava o tenente novato. Não quis comentar, depois de tantas bombas, ouvir música poderia ser devaneio de sua parte. Mas ela estava ali, ecoando, deslizando entre as paredes queimadas e chegando aos ouvidos daqueles brutos soldados. Mais alguns metros à frente, o último do grupo resolveu indagar, já que o silêncio coletivo indicava o conhecimento de todos daquela maravilhosa música. Acordaram de seguir o som, mas com cuidado, claro.

Cruzaram uma construção sem teto e por uma rua estreita de pedras foram seguindo a música que se tornava mais alta e mais nítida.

-Um piano!

-Mas quem diabos tocaria um piano em dias desses?

-Sei lá, continue andando.

Chegaram até a praça, escondidos na escuridão e se depararam com um homem sentado à um grande piano, tocando uma canção nunca ouvida. O homem de uma serenidade ímpar, não olhava para os lados, não sorria, não tinha nenhuma expressão, apenas tocava.

Estava rodeado de oficiais russos e alguns civis que assistiam maravilhados, como num concerto particular. Os rifles escorados, sem qualquer tipo de alerta para o perigo. O tempo era diferente no local.

O tenente de Berlim sugeriu posição de ataque, era uma oportunidade única de acabar com uma patrulha adversária sem muito esforço. Quando prepararam a investida foram interrompidos por um soldado russo arriscando um alemão de quinta:

-Podem sair daí, já vimos vocês. Se pretendem um ataque surpresa, é perda de tempo, temos atiradores nos telhados assistindo também.

-E agora?

-Quem garante nossa sobrevivência se sairmos daqui?

-A música garante. A música. Agora venham beber conosco, nessa praça não existe guerra.

O tenente baixou guarda e saiu desconfiado, seguido do restante da patrulha. Passos cautelosos se aproximando dos demais. A hospitalidade foi selada por uma garrafa oferecida das mãos do inimigo. Sentaram, conversaram, riram e seguiram noite à dentro com boa música e histórias. Tinha até fogueira.

O lugar permaneceu ali ao longo da guerra, com o mesmo piano, o mesmo pianista e os oficiais de ambos os exércitos se encontrando todas as noites para beber, fumar e conversar. Diz a lenda que bombas não atingiam aquela praça, desviavam. Foi o único lugar de Stalingrado que não foi atingido. O piano permaneceu ali, intacto.

O pianista calado, sereno.

Apenas tocava.

Durval Junior
Enviado por Durval Junior em 19/11/2012
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