"cultura da razão cínica" ou da suposta apatia em Marina Colasanti em "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09, e RIOS, Teresinha Azerêdo. em Revista Escola: Gestão Escolar.

Eu sei, mas não devia

Marina Colasanti (1972)

"Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.

http://www.releituras.com/mcolasanti_eusei.asp

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma. Abaixo a apatia e indiferença!

ARGUMENTOS NAS ORAÇÕES – A SINTAXE COMO SUSTENTABILIDADE E CONEXÃO ENTRE FORMA (COESÃO) E CONTEÚDO (COERÊNCIA):

1. Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

2. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.

3. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. (UMA REPETIÇÃO NÃO ENFADONHA – FIGURA GRADAÇÃO)

4. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. (ENUMERAÇÃO DE CAUSA E EFEITO.)

5. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. (CONEXÃO INSTIGANTE DE CAUSALIDADE DISFARSADA EM ADIÇÃO ARGUMENTATIVA)

6. A ir ao cinema e engolir publicidade. (HIPÉLAGE: uma figura de linguagem que se caracteriza pelo desajustamento entre a função gramatical e a função lógica das palavras.Os subentendidos são conforme o contexto. Esta figura está ligada à alusão, à metonímia e à sinestesia )

Posição de João Bosco – comentário livre:

Colasanti propõe nos desautomatizar a vida: fugir da rotina, deixar fluir a vida sem medo de ser e de viver... Ela nos convida a reflexão dos nossos condicionamentos tacanhos e mesquinhos.

A ter coragem de reinventar... a cada dia. De ser a gente junto com os outros. A não se acostumar com a rotina, com a maldade, com o sistema que nos devora e nos robotiza... A vida exige a arte de não acostumar-se com os clichês, os lugares comuns, os estereótipos, a solidão programada, “a lenta morte dos rios” e da vida...

Sofremos de um pseudoestoismo ou pseu-hedonismo.

Vivemos em uma bolha em que nos esquecemos de nós e vivemos mais o que o sistema exige... Artificializamos, envelhecemos, ficamos impotentes, o mundo se torna um lugar indesejado... ou só para alguns... Já não oramos, duvidamos de tudo e de nós mesmos... Vivemos de personas que não traduzem o que somos...

Céticos ou cínicos justificamos que é assim mesmo! É assim desde quando, por quê?

Qual a melhor maneira de dar sentido à vida e não se acostumar à razão cínica do sistema? A resposta, em parte, está no texto abaixo.

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Pequenos grandes delitos

RIOS, Teresinha Azerêdo. In: Revista Escola: Gestão Escolar.

Ed. Nº 22-Out/Nov 2012. p.58.

http://blogdohabib.blogspot.com.br/2012/10/pequenos-grandes-delitos.html

Gosto de partilhar um texto muito bonito cujo título é Eu Sei, Mas Não Devia, da escritora ítalo-brasileira Marina Colassanti. logo no início, ela diz: "Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia". E segue apontando as múltiplas coisas coma as quais nos habituamos no cotidiano, muitas vezes sofrido: levantar apressados, comer de pé por estarmos atrasados,não ter lugar para colocar flores, não ouvir o canto dos pássaros, não ligar para os amigos nem receber mensagem deles, não prestar atenção nas pessoas que caminham ao nosso lado.

"A vida é assim mesmo no mundo contemporâneo", dirão alguns. E, então, a gente se acostuma. Mas não devia! Para essa necessidade de não se acostumar é que a ética nos chama a atenção. Com seu caráter reflexivo, ela nos faz voltar para o dia a dia e problematizá-lo, quando ele nos ameaça com uma com uma passividade e, mais seriamente, com o descaso diante daquilo que, por ser costumeiro, passa, de certo modo, a ser qualificado como bom.

É comum dizer que se enfrenta uma crise moral ou ética quando não há uma transformação de valores na sociedade, mas não é isso que acontece. Valores são criações históricas. Diferem de uma sociedade para outra e se modificam com base nas relações dos indivíduos e grupos nas sociedades. Essa modificação, muitas vezes, decorre de uma reflexão ética sobre sua consistência e seus fundamentos. O que caracteriza efetivamente uma crise nas relações sociais é certa indiferença - falsa, na verdade - diante dos valores, o que podemos chamar de cinismo. Nesse caso, não somo s indiferentes: estamos tentando escamotear a realidade.

Jurandir Freire Costa, psicanalista pernambucano radicado no Rio de Janeiro, fala de uma "cultura da razão cínica", referindo-se a essa suposta apatia diante dos valores. É a afirmação de que "tanto faz" ou de que "vale tudo", encontrada muito frequentemente entre nós, na sociedade e em todas as instituições. Temos, assim, que estar atentos para ver como ela se manifesta no contexto escolar e pensar em ações que ajudem a superá-la.

O cinismo pertence à família da violência. Isso é demonstrado no gesto aluno que joga papel no chão e que, interpelado, afirma que sem sujeira não há trabalho para a faxineira; do professor que frequentemente chega atrasado e diz que, se os alunos podem entrar mais tarde, por que não ele?; do diretor que afirma que as reuniões com os pais são perda de tempo, já que a família não se interessa pelo que se passa na escola. Essa violência vai penetrando pelas frestas abertas por essas atitudes e se espalhando pelas salas e pelos corredores, instalando um ambiente de desrespeito velado.

A violência nas escolas tem sido um tema explorado em pesquisas e discussões. Entretanto, esse aspecto - chamado de pequeno - nem sempre é levado em consideração. Mas ele é a essência da negação do respeito: o alheamento, o não reconhecimento da existência do outro como alguém semelhante e igual em direitos. Nas tarefas cotidianas, é preciso que os gestores, principalmente no ambiente escolar, evitem que as pessoas se acostumem com o que se classifique como pequenos delitos. Se eles rompem com a ética, são grandes, por isso devem ser apontados e superados, num trabalho que envolva toda a comunidade.

Comentário de João Bosco

Há um ar de estranhamento nas relações sociais, principalmente decorrente do cinismo, da hipocrisia, da indiferença, da negação do outro. Creio que isso acontece amiúde e de modo velado ou explícito. Há uma violência nas entonações e olhares, no deboche como rejeição ao outro como diferente. Essa é uma das manifestações da cultura da razão cínica ou da apatia conta a qual tantos intelectuais se posicionaram como Machado de Assis, Nietzsche, Sartre, Darcy Ribeiro, Gandhi, Martin Luther King, etc. Sim, isso é construído culturalmente! Heidegger propunha a autenticidade como modo de vida ou consciência de que somos daqui e podemos transcender nossas condições históricas ou nos soçobrar ou naufragar a elas.

ARGUMENTOS NAS ORAÇÕES:

1. INTERTEXTO: PRIMEIRO PARÁGRAFO (FONTE E AUTOR) – figura é a alusão e ilustração.

2. Critica ao senso comum: "A vida é assim mesmo no mundo contemporâneo", dirão alguns.

Ponderação e reflexão – argumentos fundamentados na Ética: “...ela nos faz voltar para o dia a dia e problematizá-lo, quando ele nos ameaça com uma com uma passividade e, mais seriamente, com o descaso diante daquilo que, por ser costumeiro, passa, de certo modo, a ser qualificado como bom.”

3. Objeto de reflexão: ABSTRAÇÃO POR ANALOGIA OU INFERÊNCIA AO TEXTO DE COLASANTI: “O que caracteriza efetivamente uma crise nas relações sociais é certa indiferença - falsa, na verdade - diante dos valores, o que podemos chamar de cinismo. Nesse caso, não somo s indiferentes: estamos tentando escamotear a realidade.”

4. Argumento por autoridade: “Jurandir Freire Costa, psicanalista pernambucano radicado no Rio de Janeiro, fala de uma "cultura da razão cínica", referindo-se a essa suposta apatia diante dos valores.”

5. Dedução: “O cinismo pertence à família da violência. (...) Mas ele é a essência da negação do respeito: o alheamento, o não reconhecimento da existência do outro como alguém semelhante e igual em direitos.”