Quando o amor chegar
O orfanato ficava no alto da Rua dos Nascentes. Era uma casa antiga, com as janelas grandes e voltadas para a rua. Da sacada, no segundo piso, pendiam, debruçadas, flores miúdas e coloridas. As paredes já tinham a cor rosa desbotada pelo tempo. O jardim, cheio de plantas, flores e ervas, ficava entre o velho portão de grades enferrujadas e a porta principal de entrada. O aspecto era meio sombrio. Ali, parecia guardar histórias e tristezas.
Ninguém sabia ao certo como as crianças ali chegavam. Apenas, era possível ouvi-las quando se passava por perto. Algumas choravam por vários motivos e em tons diferentes; outras conversavam e muitas falavam alto ou gritavam. Os sons das vozes miúdas se cruzavam e, de fora, ninguém entendia o que era dito entre as paredes frias daquele casarão solitário no alto da rua. As vozes eram o único ruído daquele casarão.
Quem entrava no orfanato logo percebia que os móveis e os objetos eram tão antigos quanto às histórias de todas as crianças que por ali passaram. Tudo era muito modesto e arrumadinho. Havia no ar um cheiro de antiguidade, cera e óleo de peroba. Para um lugar onde habitavam crianças, a decoração era adulta demais, sem enfeites ou brinquedos que lembrassem sequer alguém no início da vida. A frieza estava na escuridão dos móveis, nas cores desbotadas das cortinas e nos degraus da misteriosa escada que levava para o segundo andar da casa. Era notável que havia pessoas que dedicavam horas para deixar tudo aquilo com a aparência de um lugar sério e sem problemas.
Sabia-se que o grupo que frequentava aquelas paredes era pequeno em quantidade e idade. As crianças, desde sua chegada até a despedida (sabe-se lá quando), sabiam onde poderiam ficar e o que poderiam fazer e, principalmente, não fazer. Aliás, o não compunha todas as proibições; era tão presente quanto às histórias que ali viviam.
Pietra era a menina de quase oito anos que morava no orfanato desde quando tinha fraudas. Era toda magricela, menor do que as demais crianças e vivia com falta de ar ou tossindo. Falava baixo, sem muito esforço. Passava horas no silêncio que ela mesma produzia ao redor. Quase não brincava com as demais crianças. Seu corpo leve e de pele parda parecia ser tão frágil quanto às miúdas flores pendentes na sacada. Pietra nunca era escolhida pelos raros visitantes que chegavam observando atentamente a tudo que havia naquele lugar esquecido pelo mundo.
Um dia, foi diferente. Os olhos que chegaram naquele final de tarde logo avistaram a menininha solitária, sentada no degrau da escada. Por longos minutos, os olhos observaram Pietra. As bocas adultas conversavam assuntos estranhos, em tom de cochicho. Pouco ou nada dava para entender do que diziam. A mão de alguém se aproximou silenciosamente, acariciando os cabelos em tranças da menina parda e mirrada.
Uma voz feminina e macia perguntou à Pietra sobre o que ela estaria fazendo ali, junto à escada e tão longe das outras crianças. O silêncio envergonhado encolheu os ombros e a cabeça abaixou-se para esconder a lágrima grossa dos olhinhos da cor da jabuticaba. Pietra sabia que aquela visita não lhe dizia respeito. Era apenas alguém que passaria como todos os outros.
A voz insistiu. Disse outras coisas e fez os negros olhos da menina olhar para cima. Dois olhares se encontraram e um único sentimento forte, de repente, chegou sem avisar, fazendo moradia naqueles dois corações solitários. Dali, as histórias daquelas duas pessoas se cruzaram de tal maneira que ninguém mais percebeu a ausência de Pietra nos dias longos por trás do portão de grade enferrujada do orfanato da Rua dos Nascentes.
(Luciane Mari Deschamps)