Abacateiro

Lembro de cada arvore daquele quintal, do meu quintal, quintal da minha infância, quintal dos meus sonhos. Lembro do gigante pé de uva japonesa, seus galhos arranhavam o céu, era a arvore mais próxima da entrada de minha casa. Lembro dos pombos entrando e saindo do estranho condomínio de madeira preso no alto de seus galhos. E a casinha do Negão, meu cachorro trapalhão, era encostada no seu tronco. As uvas quando secas caiam na pequena piscina de concreto onde dois patos rabugentos viviam a debater filosofia deslizando sob a água fria.
Um pouco mais a frente havia uma sensual jabuticabeira, morena bem brasileira, carregada de frutos e curvas, que delicia era chupar jabuticabas direto do tronco, enquanto meu cachorro latia abanando o rabo. As frutas mais gostosas eram as que ficavam lá em cima no topo e os passarinhos sempre chegavam primeiro, mas mesmo depois das bicadas elas ainda eram muito apreciadas.
Do outro lado do quintal um democrático pé de manga coquinho, ficava na divisa com a casa da dona Benedita, “maravilhosa senhora de cabelos brancos como algodão e voz macia, feito o de uma flauta doce”, seus galhos fartos de frutos amarelos como ouro eram meu tesouro, mas tesouro só é bom quando se pode dividir e é por isso que aquela mangueira ultrapassava o muro para poder oferecer seu néctar aos vizinhos. Colada a mangueira tal qual irmã siamesa, a misteriosa Pereira, só dava frutos quando queria, às vezes parecia que escondia as peras e derrepente, do nada a fruta já madura aparecia, pelo menos era assim que eu via.
Mas era o abacateiro, sim o abacateiro, meu abrigo companheiro, meu guardião querido.
Foi no abacateiro que construí a casa da arvore, na verdade não era bem uma construção, uma casa da arvore, posto que fossem só umas pequenas tabuas que prendi a seus galhos.
O meu abacateiro ficava perto do portão de entrada, feito sentinela, lá de cima dava para ver quase toda a rua, ali era meu refugio nos tempos de criança. E quando a vida me deixava com medo, e ela sempre achava um jeito de me assustar, eu subia nos galhos de minha querida amiga e me escondia entre suas folhas. Todos os problemas, os medos e as pessoas ficavam pequenos lá embaixo. Mas no alto do abacateiro eu era o rei, inventava histórias, lia livros e gibis, foi lá que li “A ilha do tesouro, O escaravelho do diabo, Meu pé de laranja lima”... Lá eu fui pirata, astronauta, super homem e uma vez levei um tombo ao imitar o Tarzan, cai direto no poço, ainda bem que quando vi que não tinha jeito de evitar à queda, quando o galho fez creck eu segurei com força. A vila inteira veio ver o reboliço que foi o salvamento do menino que não sabia voar.
E foi entre seus galhos e folhas que escrevi meus primeiros versos, minhas letras para a banda que um dia, só um dia tocou num festival, não precisava mais, foi sensacional. Foi sentado ali, é, bem ali naquele galho mais alto, foi lá de cima que me apaixonei pela primeira vez, foi lá também que decepcionado a vi passar de mãos dadas com outro, e logo o Ricardo, meu melhor amigo. Foi pendurado naqueles galhos que vi meu pai muitas vezes passar cambaleando e um dia partir para sempre sem olhar para traz. Era lá embaixo, no poço girando o sarilho que minha mãe retirava água e de vez em quando se sentava ao meu lado pra conversar e eu deitava a cabeça no seu colo pra ela me fazer cafuné. Naquele quintal o céu era mais azul e a noite eu subia no abacateiro, sentava no galho mais alto. Era lá que eu podia tocar as estrelas e elas desciam para conversar comigo. Nas noites de lua cheia, noites que pareciam dia até lobisomem no abacateiro aparecia. Foi naquelas noites mágicas, pendurado nos galhos de meu abacateiro querido que aprendi a viver sozinho, que aprendi conviver comigo, sonhar acordado... Hoje ainda trago comigo o meu abacateiro dentro do peito, no meu coração.