A TRIGÉSIMA PRIMEIRA CRÔNICA
"Quero um CONTATO DIRETO com a escritora, poderia me fornecer seu endereço eletrônico?" Esta mensagem chega ao site Joelhares e, por segurança e discrição, repassam para a interessada.
"Contato direto, desejo um contato direto, que coisa mais... sem propósito", pensa em voz alta Helena. "Que coisa, mesmo!"
Lá estão nome de homem, telefone e celular, parecendo letras de um cartão impresso. Aí, o download, fazer download? Um letreiro azul e amarelo, com uma espécie de forma alada sobre as palavras AUTO SERVICE. "Mas que coisa é isso", pensa Helena, já se sentindo um pouco incomodada. "Tão querendo me vender produtos para automóvel, que coisa mesmo, e eu nem tenho carro. Não me interesso por nada que diga respeito a eles. Desde que andem, tenham freio e buzina, o resto ignoro. Mas quem seria capaz de mandar propaganda prum site de literatura e pedir contato direto com o escritor? Tem cada coisa nessa internet, mas pera aí , vou é ligar pro 102 e descobrir se esse telefone é dessa pessoa mesmo."
-Alô, gostaria de saber quem é o proprietário do telefone 3245689... é de São Paulo?, ahm, tenho que ligar pra outro número... tá, obrigada.
Ligar pra outro, eu sempre achei que o 102 era a fonte inesgotável de todos os números de telefone. Ligar pro 104... alô, quero saber sobre o número, ah, tem que digitar informações, tá... obrigada... quer saber? vou é ligar pro tal contato misterioso mesmo.
Helena vai copiar o número e por sua mente passa aquela reflexão irrefreável do Millor, uma enorme conta telefônica, mas já tá discando e em horário comercial, nove da manhã.
- Auto Service, bom dia - fala uma vozinha de moça.
Por um segundo pensa em parar, já sabe que a coisa existe, o número também. Mas a curiosidade se aguça.
- Por acaso tem um senhor aí de nome Luís Venturini...?
- Vou passar, aguarde um instante...
- ...?
- Alô! - uma voz bem grave e meio rouca surge do nada e Helena fica suspensa como se estivesse diante do padre nas confissões de sua longínqua meninice. Uma voz que parecia vir do além, saindo daquela caixa escura, com cheiro indefinível e que a deixava apavorada. Apesar disso, logo a conversa fluiu.
- Mas que gentileza a senhora ligar pra mim... eu pedi seu endereço pro site Poetas Alados, é este...
- O meu site é Joelhares, senhor.
- Tá , este também visitei, ah, este é o seu, eu li muitos textos, mas tive que pedir seu endereço porque lá não tinha, outros sites têm.
- É, mas este não.
- E a senhora já está pagando uma ligação cara, por favor, diga seu número que eu ligo daqui.
Helena sentiu um alívio, nem lembrava mais do problema do preço da chamada. E assim virou a conversa de lá pra cá. O tal senhor então falou de suas pretensões em escrever, que a família não sabia disso, parece que não o apoiava, ou ele tinha dúvidas quanto ao modo como reagiriam, Helena não entendeu direito. Então outra reflexão irrefreável lhe veio à mente. Sempre que os homens querem conquistar uma mulher, vêm com as queixas sobre a família, que não os compreende, coisa e tal. É, mas aquele papo estava longe de ser uma cantada. E no Joelhares não havia nem foto. É, ele queria mesmo era conquistar uma professora. "Que coisa mais estranha," insistia a vozinha interior inconformada.
Seguiu a conversa e Luís perguntou se ela era gaúcha:
- Natural do Rio Grande?
Helena confirmou.
- Ah, a senhora sabe, o estado onde eu queria morar é o Rio Grande do Sul. Gosto muito mesmo.
Aquilo pareceu estranho, seria verdade ou era só uma forma de impressionar bem? Mas, afinal, que necessidade ele tinha de ser tão agradável?
A conversa prosseguiu com uns atropelos por conta da ansiedade e uma certa insegurança de beira de precipício. Ele seguia dizendo:
- Eu leio muito, gosto de ler, eu já tinha lido uns trinta textos, quando encontrei o seu. E escolhi a senhora, porque achei que escreve muito bem, com muita correção, com desenvoltura, gostei mesmo, muito!
Helena já começava a se animar, afinal não é todo dia que aparece um leitor tão entusiasmado. Aí disse que enviaria mensagem, que ele podia esperar. E assim encerrou-se a conversa.
A mensagem dela foi curta e imediata.
Poucos minutos depois, volta a resposta que já devia estar pronta, porque o tal leitor colocava em uns quatro itens bem desenvolvidos os motivos por que escolhera, após trinta textos, aquele que considerava como parâmetro para alguém que queria ser um escritor pra valer. Ser a escolhida pareceu de repente a ela tão absurdo como um anjo descer em uma nuvem e comunicar que o céu existe mesmo, bem como nas histórias de criança, com aquela chatice toda de tocar harpa e viver sempre feliz.
Já haviam passado alguns dias do ocorrido, ela ainda não tinha tido coragem de ler a mensagem e os dois textos em anexo. Cada vez que pensava no assunto, tinha logo uma vontade irresistível de desligar o computador e nunca mais voltar a entrar, como se uma intuição lhe soprasse que estava seguindo em direção perigosa. Mas ninguém resiste a um fã dessa envergadura, e afinal, era só um contato virtual. Então, no quinto dia, Helena, finalmente, por sentir-se na obrigação de retribuir a gentileza vinda do seu fã, dirigiu-se resoluta ao sacrifício.
Diante do computador, foi direto pra caixa de correspondência. Teve que descer várias linhas até encontrar o email de Luís. Foi ler então a sua mensagem finalmente... No dia em que a recebeu, ficara tão zonza com aquela coisa de falar ao telefone com seu leitor, que nenhum ânimo ou capacidade de absorver qualquer coisa lhe restara. Agora, lia com toda a calma. E a mensagem era tão absurda e sinceramente elogiosa com a sua pessoa que ela chegou a se sentir encabulada.. Além dos quatro motivos muito bem delineados, havia uma mensagem final que paralisaria qualquer escriba dos mais calejados. Tentou abrir os anexos e diante de uma pequena dificuldade teve a idéia. "Vou primeiro ver a atualização do site Poetas Alados". Uma pausa pra respirar. Não estava sendo fácil aquela notoriedade repentina e sufocante.
Ao abrir a página inicial, clicou em "nesta edição" e descobriu estupefata que seu candidato a aluno já tinha sido aprovado e figurava entre os autores novos naquela atualização. Ficou alguns instantes completamente perplexa. Mas como? Como é isso???
Sem mover-se, ficou ali prostrada por uma meia hora para encontrar novamente o rumo da sua história. Aí começou finalmente a escrever a tal mensagem, enquanto assimilava com lentidão o que os fatos estavam reservando. Quando pensava ter chegado ao fim, eis que uma nova e arrasadora circunstância traçava um atalho nesta trama real. Deixou o homem de um lado e o encontrou pelo outro. O fã que conquistara, que seria "seu leitor para sempre", tornou-se, de uma hora pra outra, um escritor prontinho e seu nome estava lá onde o de Helena ainda não conseguira figurar.
- Mas isso é muito doido mesmoooo! ela quase gritou, pra diminuir um pouco a sobrecarga acumulada.
Começou assim, sem nenhuma pressa e qualquer entusiasmo, a digitar aquilo que enviou no dia 20 de novembro de 2006.
Poucos dias depois, ele mandou uma pequena mensagem de conversa mole, segundo suas próprias palavras. Tinha encontrado a foto dela num outro site, e comentou, para o mal estar da escritora, que não esperava ser ela uma senhora bonita, com a expressão feliz e jeito jovial. Que tinha imaginado uma pessoa de gola rulê e óculos e mais uns bla bla bla que a irritaram pela gratuidade e falta de coerência com tudo que houvera antes. Achou melhor ignorar e, a partir daí, seu "eterno fã" tomou o mais completo chá de sumiço.
E agora ela é mais uma das milhares de pessoas nesta rede de interloucos que, após ter sido lançada às alturas por uma pessoa totalmente empolgada, vê-se, de um momento para outro, no mais completo abandono, como se a pessoa que caiu de pára-quedas em sua vida fosse resultado de uma alucinação produzida pelo excessivo tempo dedicado a navegar, que ele parecia mesmo um navegador, mas interplanetário, que entrou na sua nave sumindo em eclipse total...
Mas surge um incômodo crescente, após pensar com mais calma. Aquela primeira dúvida sobre homens que dizem não ser compreendidos pela família voltou a sinalizar novamente. Entretanto, ainda bem que os emails são concretos, o telefone existe, é uma pessoa de verdade mesmo. E como muitas pessoas de verdade na net, sentindo-se na liberdade de não cumprir nem as mais elementares regras de boas maneiras e convivência civilizada, que dirá outras que indiquem respeito pelas pessoas de quem invadem a privacidade, além de alguma coerência. Aí já é querer demais.
Pois o nosso herói à moda antiga, cheio de palavras amáveis e uma enxurrada de elogios esparramados em mensagens no capricho, não deu sequer uma abanadinha de despedida com o clássico lencinho branco, um tênue mas expressivo fecho para a história de amor literário que se esmerou tanto em começar a escrever.
Descompromisso instituído, com raríssimas exceções, é verdade, são esses contatos virtuais. Eles exigem do internauta uma flexibilidade acrobática para executar os movimentos de um verdadeiro bambolê de interações que não será alcançada sem antes passar por muitos momentos de total dureza nos movimentos de cintura, sem falar no risco de fraturas irremediáveis em espíritos mais sensíveis.
Se ele não quiser abanar com o lencinho, podia pelo menos dar uma abanadinha com o rabinho! Não seria tão elegante, é verdade, mas quem quer saber disso a essas alturas?
Helena aguarda seu contato direto e ele sabe que lhe deve isto.
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CLUBE DOS CRONISTAS COTOVELARES
* Sou professora de Língua Portuguesa, encontrei muitas portas na internet para quem escreve, espero poder transpor algum umbral (não pensem que da glória, isso deixo pro pessoal da academia de letras).
(PARTICIPANDO DESDE SETEMBRO DE 2006 como convidada)
A Trigésima Primeira Crônica | edição #70
Histórias do Tempo da Ditadura | edição #67
Grupo Mutantes, "2001" e Nós: Parceiros do Futuro na "Reluzente Galáxia" | edição #66
Narciso sem Espelho | edição #65
O velho e bom sexo | edição #64
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Bolívia e Venezuela, uma nova Guerra do Paraguai à vista? edição #62
Espirrando os estorvos | edição #61
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