Diário de Sonhos - #010: Meus Sonhos, Meus Piores Inimigos
Eu prometi a mim mesmo que nunca mais ia dizer o que eu sinto, que nunca mais ia escrever as coisas que acontecem aqui dentro. Mas isso está saindo de controle e eu já não comando mais minhas ações. Há dias que eu não converso com ninguém. Não lembro quando foi a última vez que eu disse pra alguém como eu me sentia. Tudo agora parece estático, sem vida, como um grande deserto ártico. Eu sou um doente mental, perigoso pra mim mesmo e para todos os que me cercam. Todo o ódio que eu presenciei desde minha infância e que eu escondi dentro de mim está transbordando e destruindo tudo o que encontra pelo caminho.
"Menino, para de dormir tão tarde, você vai acabar trocando o dia pela noite", minha mãe costumava brincar quando eu subia pra dormir às três da manhã. E aconteceu. No começo era só uma preferência, a noite parecia mais legal. Mas eu literalmente troquei um pelo outro. Passo o dia dormindo e só acordo quando o sol começa a ir embora. Sou uma criança da noite agora. Tudo de dia me incomoda: os sons, os cheiros, as cores. Ontem eu tive de ir no médico perto do meio-dia. Estamos perto do verão. Ao sair na rua senti como se minha pele ardesse, era ruim até pra enxergar. Fui de guarda-chuva.
E por falar em chuva, está é minha única amiga. Todos os outros dias, claros e limpos, são monótonos, causticantes. Só me sinto bem quando fica nublado. Me sinto bem disposto, com vontade de fazer as coisas. Mas quando chove... ah, quando chove! Alguma coisa desperta dentro de mim, tenho vontade até de passear. O Parque do Carmo se tornou minha segunda casa. Todo dia chuvoso me procure por lá e você vai me achar. É tão bonito o som dos meus passos na grama molhada, as gotas de chuva batendo no meu guarda-chuva.
A chuva é minha única amiga agora. Todos os meus amigos se foram. Não, não seria justo dizer isso. Fui eu quem me afastei deles. Um por um eu os destruí pacientemente, como uma galinha se alimentando de grão em grão. Por que eu fiz isso? Eu não sei. Só tive vontade de fazer. Me sinto triste, perdido, acho que esse foi o jeito que eu encontrei de dizer que os amava.
Uns tempos atrás apareceu uma pessoa. Uma mulher. Meio que namoramos há uns 4 anos atrás, mas brigávamos muito e ela encontrou outro. Tentamos voltar outras vezes, mas sempre brigávamos e ela encontrava outro. Mas dessa vez foi diferente. Eu entreguei meu coração a outra pessoa. Essa pessoa era minha melhor amiga. Mas ela não é mais minha amiga... Não é engraçado isso? Você passa tanto tempo sonhando com aquela pessoa que mora do outro lado do país e então um dia você simplesmente acorda e percebe que na verdade ama essa outra pessoa que sempre esteve por perto. Eu sempre tive muito respeito pela minha amiga, queria ser igual ela. Achava ela indestrutível, uma heroína das trevas. Mas aos poucos fui descobrindo que não era nada disso. Por trás de toda aquela parede havia uma mulher delicada e sentimental. No começo fiquei chocado com essa descoberta, mas aí vi que ela era tão frágil quanto eu, tanto humana quanto eu. Eu juro que tentei controlar isso, tentei mudar o rumo, mas fui cada dia ficando mais e mais seduzido por essa fragilidade. Eu queria estar cada vez mais perto, queria poder proteger ela do mesmo jeito que ela me protegia. E então eu me apaixonei. Foi meu pior erro...
Outro dia eu chamei ela pra ir no cinema. Ia sair o filme novo do Silent Hill e eu estou há anos esperando pra ver. Eu queria muito que ela fosse junto, queria poder dividir esse meu entusiasmo com ela. Juntei dinheiro durante um mês pra pagar o meu ingresso e o dela. Durante vários dias eu fui adiando o pedido. E se ela dissesse que não? E se inventasse alguma desculpa? Porra, ela é minha melhor amiga, claro que vai! Tomei coragem e falei com ela. Até fiz uma piada. "Ei, você vai comigo ver esse filme, suas opções são sim e sim, pro bem da sua saúde!". Achei engraçado isso. Então ela respondeu. Disse que estava ocupada com provas e trabalhos e tal. Fiquei chateado mas tudo bem. Aí eu li no Twitter dela: "Odeio gente que te prende, que não te dá liberdade pra decidir e te impõe escolhas". Foi aí que eu tive um lampejo. Lembrei de todas as situações em que eu convidei ela pra alguma coisa, todas as vezes que eu tentei me aproximar um pouco dela e ela sempre me evitou. Sempre me desprezou. Eu demorei 6 anos pra ela me chamar de melhor amigo, mas então ela conheceu uns amigos novos na faculdade há 6 meses e já chama um deles de irmão. Ela nunca me chamou assim. Caiu a ficha. Percebi que a amizade era unilateral, que eu criei essa imagem de "minha melhor amiga", mas pra ela eu era só mais um amigo qualquer.
A pessoa mais importante da minha vida foi alguém que eu criei e que não condizia com a realidade. Foi assim que perdi a pessoa mais importante da minha vida.
Antigamente eu costumava encontrar a felicidade nos meus sonhos, alguns sobre os quais eu já escrevi aqui. Do nada os sonhos pararam de acontecer, mas recentemente eles voltaram. Só que diferente de antes, não são mais sonhos fantásticos e bonitos. São sonhos ruins, tristes e que me dóem. Às vezes acordo no meio da noite e choro sem nem saber o porquê. Alguns minutos depois de acordar eu esqueço sobre o que foi o sonho, mas a sensação continua em mim. Uma sensação ruim, igual à que eu sinto quando estou acordado. Minha melhor amiga se tornou minha pior inimiga, meus melhores sonhos se tornaram meus piores pesadelos. Poético isso, não?
Acordo sem vontade de acordar, durmo sem vontade de dormir. Todos os dias me pergunto por que eu nasci. Se deus existe ele é um comediante e eu sou sua melhor piada. Não consigo fazer amigos, não consigo me empenhar em nada. Abandonei tudo. Estou vendendo meus instrumentos musicais, largando minha profissão e meus estudos, minhas diversões. E tudo por quê? Porque não consigo lidar comigo, não consigo ser feliz dentro de mim. Tenho muita vontade de me matar, mas não é tão simples assim. Eu tentei uma vez e me salvaram. Doi pra caramba, não é nada agradável. Você fica ali sentindo dor por muito tempo, os segundos se arrastam como dias. Me salvaram e eu ganhei uma úlcera. E também perdi a vontade de me matar. Não. O que eu quero mesmo é dormir. Dormir um sono sem sonhos e nunca mais ter de acordar. E se acordar, quero acordar em outra pessoa que não seja eu.