Crônica #1: Pensamento

Como a maioria das coisas que importam, essa começou com a luz fraca das estrelas numa noite de minguante. Nascido naquele grupo de tocas estranhas e criado lá desde então, o gato sabia do local melhor que qualquer um. Mal tinha sumido o sol e já tava por cima de uma das tocas, tinha cheirado uma bichana nos trinque mais cedo e caçava um pouco de gateação antes que gateassem a xaninha primeiro. Manjador das quebrada, seguiu o cheiro do chão até o topo vermelho de uma das toquinhas em menos tempo que qualquer outro malandro.

Quem visse a gata ia achar que ela tava entediada, mas ela sabia melhor. Tava louca, batendo palminha e já tinha berrado por aí suas necessidades, mas não era por isso que ia gatear com o primeiro pé de pano que brotasse no seu ninho de amor. Quando viu aquele rabo e meio mirrado de tudo não moveu nem a orelha em resposta. Já conhecia o danado e sabia que ia poder gastar um tempo antes de matar suas vontades. Os pivete iam ser coisa boa, o que ele tinha de pequeno tinha de maroto e o que ela tinha de quieta tinha de forte.

O gato já tinha açoitado sua quota de xaninhas, se tinha algo que ele fazia bem era chegar. A gata pôs trabalho dessa vez, essas que acabaram de parir sempre começam difícil, mesmo tendo ficado tanto tempo sem que dá pra ouvir o convite lá de trás. E no fim o convite venceu. Arre égua, a danada gritava de um jeito que se o gato gastasse dois dedo de ideia com isso perdia era o foco. E até que tava gostosinho dar umas gateada com uma xaninha cheirosa que nem aquela naquele clima.

Mas ambos sabiam que tinham que ficar espertos. A barulheira nas preliminares (te falei que a gata pôs trabalho!) e agora essa barulheira maior ainda tinha feito os macacos pelados se moverem. E era sempre bom ter duas patas atrás com esses macacos pelados, que devem ter caído os pelos de recalque pra cima da gataiada feliz.

De dentro de sua toca, algum macaco filho da puta cutucava o topo vermelho descolado, obrigando os gatos a se mexerem. Era agora que o gato ia saber a de qual era da gata, que ficou ali pertinho esperando o gato terminar a gateação. Ah, danada! Ficaram caladinhos um pouco pra ver se os macaco parava de se mexer lá embaixo, só o tempo de não ouvir mais nada até voltar a mandarem ver numa gateação safada como poucas. Com esses macacos por perto tinham que ser rápidos, mas só a gata que iria reclamar disso pelo visto.

A nova leva de gritaria dessa vez não foi perdoada. Dois macacos pelados saíram de dentro da toca e começaram a tacar coisas no casal em meia ação, fazendo uma barulheira dos diabos. Tava escuro e os gatos olharam com deboche pros macacos, como que desafiando-os a acertar o que quer que tivessem em mãos nos amantes do telhado naquele breu, continuando a gateada tórrida até o momento em que um lançamento mais sortudo de um macaco passou perigosamente perto de ambos, momento em que pararam e, em comum acordo, cada um picou pro seu beco.

O gato tava faminto. Todo aquele gateamento-não gateamento gasta uma energia da porra. Até podia fuçar nas coisas que os macacos pelados colocam fora de suas tocas, sempre rola uma larica marota ali, mas depois de todo aquele recalque preferia ir gatear um passarinho descuidado. Ou um rato. Passarinho dorme cedo, mas rato não voa. Toda escolha é uma derrota, ave credo.

Passeando por cima das tocas dos macacos, o gato viu bem de longe, quase na fronteira das suas terras conhecidas, uma ratazana tão gorda que não estranharia se tivesse tido medo de tomar uma surra se se metesse a besta. Sabia que era mirrado. Mas gato como ele só, sabia que era gato. Seguiu pelo topo das tocas, prevendo a rota da coitada da ratazana. Essa, acostumada com o nível do chão ou abaixo, nunca olhava pra cima, rateando sempre em frente. Nem viu o gato descer sem fazer barulho da toca pruma árvore um pouco à frente e muito acima. Muito menos viu o golpe certeiro do gato, já no chão, pra cima de si.

Mal tinha gateado a ratazana e o gato teve novo cansaço. Tinha chegado numa zona cinzenta, conhecia pouco além dali e vários outros gatos apareciam naquela parte das tocas como quem não quer nada, como quem não sabe nem o que tá fazendo nem onde tá fazendo. Deu estranhamento. Um outro mirrado tinha brotado sabe-se lá de qual estrada, gateando sabe-se lá o que por terras onde nunca tinha sido avistado. Dava pra ouvir o Ennio Morricone no silvo do vento.

Comprar briga de barriga cheia era um saco, mas qual escolha? Gato lá tem escolha? Gato gateia. E gatearam um no outro na mesma hora, derrubando as tranqueiras que um macaco pelado tinha colocado fora da sua toca dentro de uma parada azul. Junte isso com a barulheira que faziam e em menos de dois tempos já tinha macaco pelado zurreando aquela barulheira complicada pra cima dos gatos em pleno gateamento. A coisa tava tão feia que quando os macacos saíram da toca não conseguiram nem saber se era um ou dois gatos, gateação tão feroz essa que não se via onde terminava um gato e começava o outro.

Outro macaco apareceu, uma fêmea. Os compridos pelos da cabeça estavam um ninho de joão de barro. Os gatos, agora separados um do outro e se medindo, em alto e bom som, nem notaram. O primeiro macaco entrou pra toca enquanto a macaca ficou ali, zurreando baixinho aquela cacofonia. Nosso gato, mais atento pro recalque dos macacos, girou num eixo invisível que aproximou o estrangeiro dos macacos pelados. Havia visto de rabo de olho que a macaca segurava algo grande. Sem surpresa pra ele, a macaca jogou água fumaçando na direção do estrangeiro, que por pouco não virou sopa, mas tomou ali mesmo a surra de sua vida do dono da rua. Findava-se aí a gateação. Ao perdedor as feridas.

O gato também conservava sua quota de feridas. Cansado, queria descansar, mas esse novo gateamento o deixou com alguma fome. Iria gatear novamente? O macaco pelado voltou, ficando ao lado da macaca, enquanto balbuciavam entre si barulhos diversos. E o gato só lambia suas feridas. Estava curioso. Com surpresa, os macacos jogaram ali mesmo umas carninhas. Vitória! Ter usado a cuca e os macacos tinha sido uma boa idéia?

O gato comeu e picou seu beco. Ao nascer do sol, estava na metade do caminho de casa, com a boca cheia de formiga. Seus filhos iam nascer sem pai.