DDD - Diário de Derrotas [36]
Era uma vez um menino que tinha um prazo ínfimo para zerar um acúmulo de coisas que há muitas semanas deviam ter sido priorizadas e foram postas de lado por causa das urgências imediatistas alheias. Esse menino - nosso herói - passava por uma semana complicada; uma semana digna de ser esquecida, banida do calendário de sua vida; uma semana onde seus lazeres e exercícios eram compensados por horas extras enfadonhas e modorrentas.
Na véspera do término dessa semana horrenda - vulgo quinta-feira -, esse rapaz, já saindo duas horas depois do término de seu expediente de 9 horas diárias, sob chuva forte, decidiu ir pra casa fazendo uso das linhas Verde, Azul e Vermelha do Metrô.
Chegando na Estação Sé, esgotado pela fome e pelo afã, deparou-se com um caos que fugia da normalidade. Decidiu ir até a Estação Luz, para então pegar um trem para Itaquera.
Taciturnamente, subiu um lance de escadas e desceu outro; viu um trem parado, correu e entrou; suspirou aliviado. Porém, uma estação depois, constatou que havia apenas entrado no metrô da linha errada e viu-se no Anhangabaú. Não obstante a burrice, e já decidido a descer na República e de lá rumar pra Luz, viu, do outro lado da plataforma, parar um trem completamente vazio. Quando pensou em atravessar a plataforma correndo, as portas de sua carruagem já haviam sido fechadas diante de seu rosto perplexo. Resignado – um ricto murcho caído no canto dos lábios - deixou-se ser levado até a estação Barra Funda, na esperança de que o trem batesse e voltasse: um infeliz engano. Outro, aliás. Foi despachado junto com os demais passageiros. Primeiro saiu pela porta direita, onde teria de subir uma escada, atravessar a ponte por cima dos trilhos e descer do outro lado, onde o embarque era feito por quem chega da rua. Num arroubo de milésimo de segundo deu meia-volta, atravessou o trem que o levara até ali e cruzou a plataforma a passadas largas, perscrutando as portas que tinham menos gente. Quando as portas do outro lado se abriram e a manada entrou, ele perdeu as esperanças. Contudo, milagrosamente, foi agraciado com um banco vago. Sentou e encostou a cabeça no vidro, querendo morrer com a própria falta de atenção.
A fome remexeu suas vísceras quando, na estação seguinte, uma mulher, munida de um saco de papel de uma mundialmente famosa rede de fast-food, parou ao seu lado, degustando batatas fritas frias, engorduradas e, sobretudo, cheirosas, instigantes, deliciosas. A viagem seguiu seu curso normal: cheia dos intercursos, cheia do ar abafado, das celeumas irritantes, dos cacarejos estridentes, da merda habitual e corriqueira. Após um rápido cochilo com a cara enfiada num livro, ele acorda sobressaltado a poucos metros de onde tem que descer. E desce. Desce um, dois, três lances de escada. Anda sob as goteiras do terminal de ônibus. Entra na lotação e encosta num canto. À sua frente, em pé, uma garota. Uma garota normal. Desinteressante, até, constata ele, depois de uma esquadrinhada rápida. Mas há algo nela que chama atenção: o olhar. Ela o olha no olho. Enquanto isso, uma batida acontece na saída do terminal e isso instantaneamente já fode o trânsito.
Ele mergulha em seus pensamentos, que basicamente se resumem em amaldiçoar a vida, a porra da vida. Depois de meia hora, desembarca, enfim. A garota bisbilhoteira vai andando atrás dele. Ele para no farol e ela segue mais alguns metros e vira na esquina à direita. Antes que o farol fique vermelho para os carros, uma criança chama por ele. Ele olha. A voyeur, com metade do corpo coberto pela parede de uma pizzaria de quinta, acena e sorri. Ele finge demência e atravessa a rua, incrédulo. Após a primeira série – de duas – faixa, ele olha pra trás. Ela, com o mindinho na boca e o polegar na orelha, simulando um telefone e gritando pedindo o número do telefone dele. Ele, novamente, finge demência e segue andando.
As ruas, as ruas molhadas, estão vazias, bem vazias, para o horário. Toque de recolher. Semanas com assassinatos assolando as madrugadas da cidade. Ninguém sabendo quem é que está matando quem; todo mundo apenas crendo, acelerando o passo e se trancafiando em casa, à espera do dia seguinte com os resultados das puxadas de gatilhos noturnas.
Ele consegue chegar em casa são e salvo, enfim. Toma um banho rápido – depois de tirar uma garrafa com resto de refrigerante da geladeira e esconder embaixo de sua cama - e corre pras panelas: tem carne moída. Acende o fogo e abre um pão com os dedos indicador e médio. (Situação análoga ao que queria fazer para amainar as intempéries da vida). Insere uma colherada da carne no pão; soca tudo até o fundo. Leva a colher à carne, enche um punhado e, a meio caminho entre panela e pão, encosta os nós dos dedos no alumínio quente e a colher sai voando. O espalhafato no chão. Um risco rosado onde havia encostado. Leva a queimadura à boca, fita o relógio do microondas e conta quantas horas ainda tem para dormir, sabendo que pelo menos umas duas seriam extraviadas pela internet.
Pesaroso, ambicionando uma vida simples numa cidade pequena – um não-poder inominável -, dá uma mordiscada no lanche e sente um dente latejando por causa da quentura. Encara-se no reflexo do armário: não se reconhece. E essa parece ser uma tendência imutável da vida: não se reconhecer conforme o tempo passa. Apesar de os amanhãs serem todos iguais. Todos, todos iguais.
E dispensáveis.
08/11/2012 - 23h33m