Desejo de Menino
Eu morava numa cidade do interior quando tinha apenas oito anos. Era um lugar com poucos habitantes e onde um sabia da vida do outro (a vivida e as histórias criadas pelos olhos espichados por trás das vidraças das janelas entreabertas). Era o tipo de cidade com o extremamente necessário: a igreja, a praça, o cemitério, a prefeitura, a agência bancária, os correios, três lojinhas, um mercadinho e, claro, o campinho atrás da escola. Ah, e o grupo escolar!
As casas tinham pátios para brincar e cercas com moirões e arame farpado. Algumas nem tinham cerca, eram rodeadas por árvores frutíferas e flores do campo de diversas cores. Havia somente duas residências mais ajeitadinhas, de alvenaria, com janelas grandes e pintadas em cores fortes. As demais residências eram de madeira, simples e com a pintura já desbotada com o tempo.
Meus amigos viviam nas casas vizinhas e a maioria era filhos dos irmãos da minha mãe e de meu pai. Tínhamos todos quase a mesma idade e passávamos horas a fio na rua, brincando de tudo que inventávamos.
A brincadeira favorita, porém, era com a bola do primo Chico que ele ganhou no dia do aniversário. Como era chutada todos os dias, a pobre já estava toda suja e com o couro marcado. Se Chico ficava doente, não tinha jeito de ele emprestar a bola. A regra era clara: ele só levava a bola se desse as ordens durante a pelada, escolhesse quem brincava e quem ficava no banco de reservas, além disso, seria o juiz e seu time não poderia perder (este último item ele nem mencionava, mas ficava claro quando acabava com a brincadeira de todo mundo e voltava com a bola embaixo do braço; bastava estar de mau humor ou discutir com alguém durante a partida para Chico deixar o pessoal sozinho no terreno baldio, sem o que fazer e aborrecido).
Ah, a bola do meu primo sempre foi meu sonho de menino! Um dia pedi para meu pai uma bola igual. Não sabia quanto custaria ou onde ele a compraria, afinal, nunca tinha visto nada igual no mercado do seu Juca, o único da cidade. Só sei que pedi e deixei no ar a minha vontade de ser dono de alguma coisa. Essa ideia cresceu tanto dentro de mim! À noite, ao deitar, olhava para o forro do quarto somente imaginando o quanto seria divertido ter aquele brinquedo só para mim. Esse era o meu jeito de fugir do mundo egoísta do Chico.
Se eu tivesse uma bola, eu a dividiria com todos os meninos da minha rua. Faríamos até um campeonato. Eu, às vezes, seria o juiz, mas deixaria que outros também o fossem. Se houvesse briga entre os meninos, eu esperaria os ânimos acalmarem para dar continuidade ao jogo. Se alguém implicasse comigo e me chutasse ou se meu time perdesse, seria forte, não choraria e tampouco deixaria o campo, levando a bola embaixo do braço como fazia o Chico. Se eu tivesse uma bola, seria o melhor amigo de todos.
Meu desejo foi crescendo assim como eu. Já tinha aprendido a escrever, a ler e ainda continuava a desejar uma bola. Nem precisava ser igual a do Chico. Agora, poderia ser como aquela que vi no mercadinho, pendurada em um saco de plástico transparente. Sabia que era mais leve e, quando chutada, ia (se bobeasse) para a direção contrária. Mesmo assim, eu queria muito aquele brinquedo, objeto dos meus desejos.
Nunca fui o melhor aluno da sala, mas sempre fazia as tarefas que a professora mandava. Aprendia o básico e sabia fazer conta de cabeça. Tinha muitos amigos. Adorava passar minhas tardes no campinho, onde qualquer coisa que pudesse rolar virava uma bola, caso o Chico não levasse a dele.
Chegava a minha casa com o escuro da noite querendo invadir o céu. Minha mãe ralhava comigo, mas logo esquecia o motivo e me mandava para o banho. Este era o momento em que eu relaxava da correria e limpava os pés ralados e as canelas machucadas pelos chutes dos adversários.
Como o tempo dos jogos nunca era definido, passávamos horas no campinho em algazarra, gritaria e, principalmente, disputando uma única bola que parecia fugir dos pés sujos da garotada soada. Com chuva ou sol, garoa ou frio, arranjávamos motivo para uma partidinha animada, divertida, disputada com euforia e agitação.
Minha vida era dividida entre o colégio e os jogos com os amigos. E por isso meu pai reclamava o tempo todo. Dizia que eu vivia na rua, que não colaborava em casa e que as notas estavam baixas para quem só tinha que estudar. Por causa deste pensamento, ele alegava que uma bola seria minha perdição e negava-se a me dar uma de presente.
Perdido ou não, eu apenas queria o instrumento de diversão das minhas tardes com os amigos inseparáveis. Meus primos eram do tipo “pau para toda obra” e sempre estávamos envolvidos em situações que mostravam o nosso compromisso com uma infância saudável e aventureira. Mesmo assim, eles não preenchiam o vazio que a minha vontade de ter a tal bola de couro deixava.
Os dias passavam arrastados, preguiçosos e cheios de atividades que só interessavam a nós, os meninos da várzea. Apesar de lento, o tempo passou e levou o menino que brincava durante as tardes até a noitinha naquela cidade pequena do interior. A bola tão desejada também ficou para trás, nos sonhos projetados no teto do quarto daquele que um dia queria ter algo para chamar de seu. Nunca soube o real motivo de eu não ganhar a bola de presente. Meu pedido ficou em algum lugar, assim como meus sonhos de bom amigo, jogador e capitão do meu time de futebol.
Luciane Mari Deschamps