Nossos Filhos

Saindo da Ilha para pegar a Av. Brasil sentido São Paulo. Perto das 6 da tarde. Antes a gente descia direto e chegava na pista de subida da Brasil. Agora precisamos dobrar à esquerda num sinal e fazer uma curva prolongada. Quem desce direto alcança o viaduto que lhe deixa na pista de descida da Brasil, em direção ao centro.

Nessa curva que a gente pega para subir a Brasil é que os encontramos. Perto das 6. Moribundos. Em sua maioria jovens. Mas há também crianças, os de meia idade e até idosos. Roupas mulambentas, diriam alguns mais afetados. Esfarrapadas, um termo mais enquadrado. A roupa nos diz da dignidade deles: nenhuma. A cara permanente de sono. Uma cara que nunca está limpa. Perto das 6 da tarde. Uma senhora sentada, mão estendida, pede mais um pouco, sem olhar pro jovem ao seu lado. Que parece dizer: “não vou te dar porra nenhuma”.

Vários deles cheirando ou fumando ou sorvendo alguma coisa que não se sabe bem o que é. Mas que deve necessariamente ser crack. Em plena via pública. Perto das 6. Um canteiro de obras se instalando no espaço, tipo praça, entre o antigo acesso à Ilha e essa curva que fazemos pra pegar a Brasil subindo. Era ali que eles ficavam. Meio escondidos. Agora, face à instalação do canteiro, eles vieram pro outro lado da calçada. E só não vê quem não quer. Dá medo.

Um medo que nos faz pensar que somos superiores a eles. Os cracudos. Que vêm cravar em nossos pescoços seus dentes pontiagudos. Centenas deles caminhando na nossa direção como nos filmes de mortos-vivos. Suas aparências horripilantes e as roupas carcomidas como eles mesmos. Os zumbies. Tirem seus relógios, as pulseiras de ouro e os cordões. Mas será que não tem nenhum guarda por perto?

Que será que eles pensam? Agora, perto das 6 da tarde? Como ou em que lugar vão dormir mais tarde? Será que vão escovar os dentes? O que será que os impede de terem uma vida que consideramos normal? Na verdade podemos ter uma grande discussão a esse respeito. Chamar a nossa vida de normal, nós que estamos desse lado, pode ser algo pretensioso. Digamos assim: o que será que os impede de terem uma vida diferente? Menos degradante? Observo que nenhum cachorro está por ali. Os cães, esses verdadeiros anjos da vida, que só são agressivos quando treinados para esse fim, são os eternos amigos dos mendigos. Mas os cracudos estão além dos mendigos. Não são eles que consomem a droga. Estão no estágio de serem por ela consumidos. Não podem pensar em mais nada que não seja o reflexo condicionado, automatizado de serem levados ao prazer efêmero de que se alimentam. E como esse prazer acaba logo, querem-no de novo. É claro que um médico-psiquiatra explicaria melhor. Fico só no nível do que sinto.

Quando um deles atravessa a rua e seus olhos com os nossos se encontram, além do medo, podemos rapidamente pensar no que seria possível fazer para tirá-los dessa situação. Que julgamos constrangedora. Nem os animais se degradam tanto. Aliás, os animais nunca se degradam. Só os humanos. Mas eles não parecem necessitar de ajuda. Estão convencidos, por algo maior que eles, que só podem caminhar naquela direção. Enquanto nós podemos ainda optar pelo caminho que aparentemente preferimos. Temos também um monte de vícios e dependências. Mas de alguma forma podemos impedir que eles assumam o nosso domínio. Um ladrão mais sofisticado, que conceba um plano para o roubo a uma joalheria num shopping, não pode ser cracudo. Ainda que seja só o integrante da equipe, que terá necessariamente uma liderança. Então a solução estaria em levá-los ao restabelecimento da condição de poderem optar por diferentes caminhos. Mas isso não passa de um blá-blá-blá. Qualquer psicólogo ou assistente social está na condição de oferecer esclarecimentos bem mais aprofundados.

E aquelas crianças? Como chegaram até ali? O que fizeram seus pais? Sinto-me na tentação de imaginar que não tiveram pais. Até nisso foram desassistidas. Na favela não existe pavimentação, urbanização, drenagem, esgoto sanitário. Os ratos convivem com você dentro de casa. Muitas crianças não sabem o que é um vaso sanitário. Por isso não sabem como utilizá-lo. Eventualmente dormem com seus irmãos. E o incesto pode ser uma prática muitas vezes considerada normal. Um adulto criado nessas condições, que não se modificam com a rápida passagem pelas classes de ensino fundamental público, não tem a mínima condição de frequentar um shopping. Não possuem roupas adequadas. Uma imagem adequada. São barrados na entrada. Voltam então pra favela. Onde o que encontram é... nada.

Tirá-los da rua, ou daquela calçada, e colocá-los num depósito. A internação compulsória. Pronto. É a solução. Tudo fica limpo. Higienizado. Afinal, um turista que prefira ir a Campo Grande, ao invés de passar pela Ponte Estaiada, que ele já viu muitas na Europa, não terá que se deparar com esse cenário dantesco. Depois é só transformar depósitos desse tipo em locais de visitação pública. Tal como os jardins zoológicos. Onde ficam as espécies exóticas e os animais ferozes. Teríamos assim o Jardim Zoológico das Feras da Sociedade. Não devendo ser esquecido nesse zoológico o departamento reservado aos políticos.

Rio, 07/11/2012

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 07/11/2012
Reeditado em 07/11/2012
Código do texto: T3973208
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