A CARTA
Outro dia, à procura de um envelope, abri a terceira gaveta da direita do armário de meu escritório e reencontrei uma carta, escrita por meu pai. É nessa gaveta que segreguei parte de meu passado, em fotografias, postais, cartas remetidas e recebidas, rascunhos de poesias, cartões de datas festivas, relíquias.
Por cima de tudo, uma folha em tamanho ofício, tipo papel seda que se usava antigamente como cópia de documentos datilografados, colocados na máquina de escrever por baixo do papel carbono. Descrevo porque os mais novos poderão não compreender, ainda mais depois da piada contida no cartum que recebi, via internet, mostrando um menino espantado diante de uma máquina de escrever utilizada por um adulto e com a seguinte legenda: “Cara, ela imprime ao mesmo tempo em que voce digita!”. Pois era assim naqueles tempos. Por falar em tempos, transcrevo o início da carta para que possamos nos situar nele:
“Pôrto Alegre, 26 de janeiro de 1975.
Prezado filho Nelson
Coube-me, desta vez, escrever-te para dar notícias nossas e, ao mesmo tempo, responder cartas tuas, sendo que a última, se não me falha a memória, datada de 19 do andante.”
No dia anterior da data da carta, meu pai completara 74 anos e eu, na distante Paraíba, atuando pelo Projeto Rondon, prestes a completar 24 anos.
A carta estava por sobre os demais papéis porque eu a colocara ali um mes antes, exatamente para não esquecer de lê-la num momento oportuno. É que, um mes antes, havia visitado minha meia-irmã mais velha que mora no interior e, como havíamos combinado, levei uma caixa de fotografias antigas da família. Entre as fotografias, achei a cópia da carta, cuidadosamente dobrada e que logo identifiquei como sendo uma carta escrita por meu pai. Ele possuía uma caligrafia muito bonita, mas, por força do ofício (funcionário do Foro Judicial), gostava de datilografar, ou talvez, quem sabe, para tornar mais formal o contato, já que intimidade era algo que raramente demonstrava experimentar. Ao encontrar a carta, guardei-a na bolsa sem abri-la e, de volta da visita, deixei-a na gaveta do passado.
A memória da minha pele traz bem viva as incontáveis cicatrizes das surras que levei de meu pai até mudarmos para Porto Alegre, no fatídico ano de 1.964. Segundo informações que trago de lembrança, as surras cessaram porque na capital passamos a morar em um apartamento e a família ficaria constrangida se os vizinhos ouvissem meu choro ao ser surrado. Desconfio, depois desses anos todos, que havia aí uma mera desculpa. Meu pai já tinha perdido a energia de outrora, além de eu ter encorpado no início da adolescência.
De qualquer forma, o cessar da agressão não teve o condão de afastar da memória o pânico e a dor do relho de couro trançado que havia me dilacerado a pele por anos a fio.
O encontro com minha meia-irmã na casa dela tinha ocorrido como uma proposta de reaproximação e de resgate de tanto tempo que permanecemos afastados, com encontros apenas nos dias de funerais de parentes comuns. Naquele dia, acompanhado de meu filho menor e duas outras irmãs, com respectivos cunhados, fizemos a visita, como prometido.
Num momento em que pudemos conversar, alheios ao burburinho do encontro familiar, ela relembrou algumas surras que levei e também outras que ela tinha evitado, com jeito conciliador. No meio da conversa, uma frase dela me tocou, pois teve o dom de resgatar algo que eu trouxera dentro de mim a vida toda:
- Tu sempre fizeste as tuas travessuras, mas eras um menino muito bom. Não sei por que o pai batia tanto em ti.
Aquilo me soou como a redenção. Talvez eu precisasse ouvir, de alguém que me conheceu na infância, uma realidade que permanecia abafada dentro de mim pelas imperativas frases e surras a me jogar dúvidas sobre quem eu era e ainda sou. Por toda a infância imaginei não ser amado pelos meus pais, não apenas pela falta de carinho e reconhecimento, mas, sobretudo, pela repetição continuada da alegação de que não me comportava bem e, por isso, quase nada merecia.
Hoje, depois de ter criado filhos amorosos sem jamais tê-los tocado com uma palmada sequer e tendo decorrido cinquenta anos, vejo reforçadas minhas idéias de educação de filhos. Mais, acho uma covardia que um adulto use sua força desproporcional em relação a uma criança, como método de educação. Bater num filho é declarar a própria incompetência de adulto em lidar com alguém mais fraco e de menor experiência na vida. Ainda que tal incompetência seja inconsciente, aferrada a ensinamentos introjetados e jamais questionados, não há como aceitá-la. Perdoar, talvez, aceitar jamais.
Assim é que chego a esta carta com frases burocráticas e de uma objetividade prussiana, afora o “prezado” (desejaria “amado”) filho.
No entanto, no final, meu pai se revela de um jeito como nunca pudera perceber antes. Concluindo a carta, ele escreve:
“Aceites abraços de todos de casa e um abração de teu pai.” (grifo meu).
Fiquei imaginando quantas vezes em minha vida meu pai me deu “um abração”, quando de outros recebi apenas “abraços”.
Outro dia, à procura de um envelope, abri a terceira gaveta da direita do armário de meu escritório e reencontrei uma carta, escrita por meu pai. É nessa gaveta que segreguei parte de meu passado, em fotografias, postais, cartas remetidas e recebidas, rascunhos de poesias, cartões de datas festivas, relíquias.
Por cima de tudo, uma folha em tamanho ofício, tipo papel seda que se usava antigamente como cópia de documentos datilografados, colocados na máquina de escrever por baixo do papel carbono. Descrevo porque os mais novos poderão não compreender, ainda mais depois da piada contida no cartum que recebi, via internet, mostrando um menino espantado diante de uma máquina de escrever utilizada por um adulto e com a seguinte legenda: “Cara, ela imprime ao mesmo tempo em que voce digita!”. Pois era assim naqueles tempos. Por falar em tempos, transcrevo o início da carta para que possamos nos situar nele:
“Pôrto Alegre, 26 de janeiro de 1975.
Prezado filho Nelson
Coube-me, desta vez, escrever-te para dar notícias nossas e, ao mesmo tempo, responder cartas tuas, sendo que a última, se não me falha a memória, datada de 19 do andante.”
No dia anterior da data da carta, meu pai completara 74 anos e eu, na distante Paraíba, atuando pelo Projeto Rondon, prestes a completar 24 anos.
A carta estava por sobre os demais papéis porque eu a colocara ali um mes antes, exatamente para não esquecer de lê-la num momento oportuno. É que, um mes antes, havia visitado minha meia-irmã mais velha que mora no interior e, como havíamos combinado, levei uma caixa de fotografias antigas da família. Entre as fotografias, achei a cópia da carta, cuidadosamente dobrada e que logo identifiquei como sendo uma carta escrita por meu pai. Ele possuía uma caligrafia muito bonita, mas, por força do ofício (funcionário do Foro Judicial), gostava de datilografar, ou talvez, quem sabe, para tornar mais formal o contato, já que intimidade era algo que raramente demonstrava experimentar. Ao encontrar a carta, guardei-a na bolsa sem abri-la e, de volta da visita, deixei-a na gaveta do passado.
A memória da minha pele traz bem viva as incontáveis cicatrizes das surras que levei de meu pai até mudarmos para Porto Alegre, no fatídico ano de 1.964. Segundo informações que trago de lembrança, as surras cessaram porque na capital passamos a morar em um apartamento e a família ficaria constrangida se os vizinhos ouvissem meu choro ao ser surrado. Desconfio, depois desses anos todos, que havia aí uma mera desculpa. Meu pai já tinha perdido a energia de outrora, além de eu ter encorpado no início da adolescência.
De qualquer forma, o cessar da agressão não teve o condão de afastar da memória o pânico e a dor do relho de couro trançado que havia me dilacerado a pele por anos a fio.
O encontro com minha meia-irmã na casa dela tinha ocorrido como uma proposta de reaproximação e de resgate de tanto tempo que permanecemos afastados, com encontros apenas nos dias de funerais de parentes comuns. Naquele dia, acompanhado de meu filho menor e duas outras irmãs, com respectivos cunhados, fizemos a visita, como prometido.
Num momento em que pudemos conversar, alheios ao burburinho do encontro familiar, ela relembrou algumas surras que levei e também outras que ela tinha evitado, com jeito conciliador. No meio da conversa, uma frase dela me tocou, pois teve o dom de resgatar algo que eu trouxera dentro de mim a vida toda:
- Tu sempre fizeste as tuas travessuras, mas eras um menino muito bom. Não sei por que o pai batia tanto em ti.
Aquilo me soou como a redenção. Talvez eu precisasse ouvir, de alguém que me conheceu na infância, uma realidade que permanecia abafada dentro de mim pelas imperativas frases e surras a me jogar dúvidas sobre quem eu era e ainda sou. Por toda a infância imaginei não ser amado pelos meus pais, não apenas pela falta de carinho e reconhecimento, mas, sobretudo, pela repetição continuada da alegação de que não me comportava bem e, por isso, quase nada merecia.
Hoje, depois de ter criado filhos amorosos sem jamais tê-los tocado com uma palmada sequer e tendo decorrido cinquenta anos, vejo reforçadas minhas idéias de educação de filhos. Mais, acho uma covardia que um adulto use sua força desproporcional em relação a uma criança, como método de educação. Bater num filho é declarar a própria incompetência de adulto em lidar com alguém mais fraco e de menor experiência na vida. Ainda que tal incompetência seja inconsciente, aferrada a ensinamentos introjetados e jamais questionados, não há como aceitá-la. Perdoar, talvez, aceitar jamais.
Assim é que chego a esta carta com frases burocráticas e de uma objetividade prussiana, afora o “prezado” (desejaria “amado”) filho.
No entanto, no final, meu pai se revela de um jeito como nunca pudera perceber antes. Concluindo a carta, ele escreve:
“Aceites abraços de todos de casa e um abração de teu pai.” (grifo meu).
Fiquei imaginando quantas vezes em minha vida meu pai me deu “um abração”, quando de outros recebi apenas “abraços”.