O ESTRANHO PRIMO DO INTERIOR

O estranho primo do interior

Chamava-se Ismael. Veio morar conosco numa dessas tardes de inverno, quando o sol se põe tão lentamente que parece que vai desaparecer para sempre. Era forte, robusto, ideal para o quartel. Nos meus onze anos, me parecia muito velho. Era um típico exemplar de rapaz do interior. Olhos baixos, gestos miúdos, aperto de mão respeitoso nos mais velhos. Jeito de quem sabe onde pisa. Eu, ao contrário, tão acostumado a minha vida serelepe, sempre à busca de aventuras, me atirava de corpo e alma no exercício das travessuras. Estava sempre à cata de espécies que alimentassem esta gana. Trazia uma mala marrom de um tom avermelhado, com alças de metal, que me deixava curioso. Foi morar no quarto dos fundos, onde passaria os próximos nove ou doze meses, não sabia bem. Percebia, de imediato que não gostava de minhas atitudes. Parecia me julgar infantil, imaturo ou qualquer coisa que lhe viesse na cabeça a respeito de meninos de minha idade. Julgava-se, provavelmente, muito velho. Sentia um respeito e um carinho pelo meu pai, que me irritavam profundamente. Era o sobrinho de longe, aguardado com gentilezas e salamaleques. Na verdade, não tanto quanto eu imaginava. Mas naquela época, anos sessenta, era fácil para um menino de minha idade importar-se com estas coisas: muita imaginação, poucas oportunidades de alargar horizontes, de movimentar a mente, descobrir coisas novas. Não pouco era o que a leitura me provocava, mas não bastava: havia a astúcia do movimento, a vontade de vencer o impossível, de tornar valente o fraco, de observar a transformação do inimigo, de mexer com o provável bandido, de não ser sempre o mocinho, mas o protagonista de toda a engendração da trama. Pouco nos falávamos. Sempre se dirigia a meu pai, a minha mãe, mesmo que a situação se referisse a mim. Aos poucos, fui conhecendo os seus pontos fracos, a sua imensa vaidade, os perfumes que guardava na mala marrom de tom vermelho, as colônias, os cremes de barba, as loções, os talcos, sabonetes, a brilhantina, a base para as unhas. As camisas muito bem passadas e guardadas de forma a não amassarem, as calças com o vinco perfeito, os sapatos lustrosos. Aos sábados, geralmente ia ao cinema à noite, nunca às matinês, como eu. Depois, estendia nas festas de garagens, as chamadas brincadeiras onde os rapazes e as meninas se reuniam para ouvir e dançar ao som dos rocks ingênuos, blindando à cuba libre e samba. Dizia que era coisa de homem, como se eu não soubesse o tipo de festa que faziam: conversinha pra cá, bate-papo pra lá, os homens de um lado, as meninas de outro. E pouco se encontrando. E ele se julgava o máximo. Certa vez, quando se afastou para ir a uma destas festas, deu-me um cascudo na orelha, me olhou com cara de vilão, de filme de caubói e ameaçou despudorado: _Não tenta te intrometer na minha vida. Sou homem, tu é um frangote, ainda mija nas calças. – em seguida, deu um sorriso astuto, puxou uma carteira de Continental do bolso, aquele com debrum dourado nas laterais ( a gente chamava de ourinho), acendeu, deu uma baforada na minha cara e se afastou com as mãos nos bolsos. Era a outra personalidade que se desenhava só para mim. Uma tarde, quando ele havia saído, aproximei-me do quarto. Coração aos saltos, assustado. Mão trêmula na fechadura, encaixando a chave de forma a não fazer barulho e não acordar os meus pais da sesta. Abri a porta, espiei longamente para dentro, tentando ver algo extraordinário. O ambiente estava na penumbra. Aproximei-me devagar, batendo na cama, fazendo um barulho surdo na minha coxa, franzindo a testa de dor, tentando não fazer qualquer ruído denunciante. Subi na cama. Somente as luzes que vinham pelas frestas da veneziana de madeira amarela. Umas tiras de luz que iluminavam o quarto, espraiando-se pela parede oposta à janela. Figuras de mulheres semi-nuas. Atrizes de Hollywood presas à parede, em poses sensuais. Havia uma prateleira bem alta, acima da cama. Dei alguns passos, atolei os pés entre as molas do colchão, mas não me detive, inquieto. Bati com os dedos na mala, que serviam de anteparo para minhas investigações. Neste momento, dei-me conta que ela estava ali, aos meus pés. Mas a prateleira, cheia de objetos me atraía vigorosamente. Então subi na mala, para alcançar o meu objetivo. O meu pé direito afundou rapidamente, fazendo uma cratera, como se de papelão fosse, tão frágil se mostrava em sua consistência. Assustei-me, mas já que estava ali, não poderia desistir. Estiquei-me o mais que pude, alonguei o braço direito em direção ao topo da prateleira, enquanto a mão esquerda segurava-me no outro lado, para manter o equilíbrio. Empurrei o que pude, para descobrir com o tato, o que não via com os olhos. Achava contornos estranhos nos objetos, mas não conseguia adivinhar do que se tratava. Um deles, percebi que era apenas um porta retrato. Puxei-o sem qualquer consideração, atirando-o sobre a cama. Nem me dei ao trabalho de ver do que se tratava. Arrastei em minha direção os demais, que estavam mais ao fundo, próximos à parede. Eram pequenos objetos, na semelhança de santos ou bonecos, não conseguia identificar. Aos poucos, vieram na direção de minha cabeça, sendo um segurado e os demais, caindo desordenadamente, uns sobre os outros, posicionando-se confortavelmente ao lado do porta- retratos. Sentei-me rapidamente, para examinar o objeto de minha pesquisa. Eram figuras estranhas. Meus olhos castanhos, grandes e brilhantes, ficaram ainda maiores e com todos os adjetivos em profusão. Minha boca entreaberta, nariz fungando, espirrando, provocados pela poeira e pelo cheiro estranho que exalavam. Pareciam divindades africanas ou egípcias, homens com cabeça de animais, um diabo de chifres enormes e capa vermelha. Larguei-os, assustado. Quando o fiz, detive-me na fotografia em preto em branco: uma mulher, loira, de cabelos crespos, que deveria ser uma namorada ou a mãe ou a irmã ou qualquer uma de sua intimidade. Nada me interessava naquele momento, a não ser fugir dali em desabalada carreira: esquecer as figuras estranhas e tão assustadoras, a fotografia que poderia ser de alguém que houvesse morrido há muito tempo, pois havia uma vela usada, próxima ao porta-retratos, a mala esburacada, quase destruída pela desatenção de meus pés. Pulei da cama e me deparei de cara na porta, que não se abria de jeito nenhum. Procurei a chave nos bolsos da bermuda, abaixei-me, especulando pelo piso, embaixo da cama e nada. Havia sumido como por encanto. Certamente na euforia, eu a havia esquecido em algum lugar. Talvez sobre a cama, na própria prateleira onde se encontravam os objetos. Estava quase em pânico. Aquelas coisas estranhas me davam medo e a aventura parecia ter acabado ali, ou apenas começado. Eu estava preso entre aquelas coisas inanimadas que me olhavam incessantemente a cada gesto que fazia, como se me acompanhassem, observando meus movimentos. Minhas mãos doíam, procurando em cada canto, em cada décimo do assoalho a maldita chave. Meus lábios estremeciam e meus olhos, de arregalados, ficavam esbugalhados. Subi na cama novamente e fiz um esforço sobre-humano para alcançar a prateleira. Subir na mala, jamais. Não poderia danificar o que restara dela. Mas como chegar mais próximo, se não fazer da mala um trampolim? Não havia outra maneira melhor. Minha cabeça já não raciocinava perfeitamente. Estava confuso. Temia que os objetos me seguissem, subissem em minhas costas, segurassem o meu pescoço e me asfixiassem, irritados em que estavam por eu ter invadido um mundo que não me pertencia. Quando atingi a estante, senti meus dedos se deslocarem no nada, a não ser poeira, e a saliência abrupta da madeira, que não me parecia ser de primeira. Definitivamente a chave não estava lá. Então, desci da cama, num salto, quase em desespero. Pensei em gritar por meu pai, minha mãe, chamar o vizinho. Mas não tive coragem. Precisava encontrar a chave. Precisava sair dali. As horas passavam muito rapidamente, mas significavam uma eternidade, porque a cada minuto, mais um tempo disponível para o meu desespero. Então, como uma criança mimada, comecei a gritar em desvario, quase em suplica, pedindo por socorro, cheio de raiva, furor, ira, medo, pavor. Subi na cama, comecei a dar pontapés na mala, até atirá-la ao solo. Foi quando ouvi um tilintar metálico. A chave estava dentro da mala e caíra ao solo, quando a empurrei com violência. Com sofreguidão, atirei-me ao assoalho, segurando-a com firmeza e me dirigindo imediatamente à porta. A mão tremia, o braço não atinava ao que o gesto obrigava, o corpo todo tremia. Ao abrir a porta, senti uma lufada de vento frio e a noite já se prenunciava em seus primeiros acordes. Um zunido de vento, um balançar de folhas, o revoar dos pássaros agasalhando-se nas copas e subitamente uma luz que despertava meus olhos meio cerrados. Na minha frente, o primo do interior, olhando-me de uma maneira mais estranha do que as imagens que encontrara. Sem fazer qualquer gesto, patético, mãos nos bolsos, boca aberta, esperando explicações. Mais adiante, meu pai, seguido de minha mãe, esbaforida, procurando-me, argumentando que não me encontraram em lugar algum da casa, nem do bairro. Queriam explicações. Quis sumir naquele momento, agachar-me e passar de soslaio, como se nada do que sucedera me dissesse respeito. Mas não teve jeito: a mão pesada de meu pai, pousou no ombro esquerdo, perdidamente, como se ousasse ficar ali a vida inteira, até que eu desse uma explicação. Então falei: _Não te preocupa, pai. Trabalho do colégio. Saí correndo. Não me perguntaram nada. Foi muito forte o que falei, como se desabasse qualquer argumento. Trabalho da escola era sagrado. Mas que diabo de trabalho eu devia estar fazendo lá? Foi o que tentei explicar durante toda a noite. Era mais uma trama imaginosa que precisava criar.

Gilson Borges Corrêa
Enviado por Gilson Borges Corrêa em 28/02/2007
Reeditado em 05/03/2007
Código do texto: T396970
Classificação de conteúdo: seguro