= Meu penúltimo presente =
Divino era um homem simples, casado com Dona Raimunda, tinham dois filhos, Luiz e Remilton. Moravam em um casebre as margens de um ribeirão, na comunidade de Lagoa, município de Divinópolis.
Tudo começou no final de 1985. Eu havia saído do inferno do alcoolismo e fui trabalhar numa granja de suínos, perto de sua casa. Fizemos uma grande amizade. À tardinha eu ia sempre para a sua casa, ali, eu sentava no rabo fogão de lenha, onde tomava aquele café da roça e fumar um cigarrinho de palha. Como aquilo era bom!
Infelizmente, eles tinham problema com bebida alcoólica, em pouco tempo a bebida mostrou o seu efeito destrutivo. Por varias vezes, o seu filho mais moço, vinha a minha procura para apartar as brigas entre, o pai, a mãe e o filho mais velho; Era assustador, tornavam-se super agressivos, jogavam o que tinha nas mãos, foice, machado, pedras e pau, ali jorrava sangue, muito triste aquele quadro. Eu chegava com muito jeito, primeiro procurava desarma-los espiritualmente, depois guardava as ferramentas. Foram tempos difíceis. O álcool sempre deixava o seu rastro. Era uma pobreza tão grande! Casa muito pequena, não tinha água encanada, nem luz elétrica, nem mesmo um banheirinho para colocar um chuveiro ou fazer suas necessidades fisiológicas. Enquanto tinha ovos, eles vendiam para comprar suas bebidas e o mínimo de alimento, por fim, venderam até mesmo as galinhas. Na medida do possível eu os ajudava com cestas básicas. Trabalhei existentemente para ajuda-los a pararem de beber, mas era inútil. Eram sensíveis e amorosos, ao mesmo tempo insanos sob o efeito do álcool. Foram quase 2 anos de luta, eu estava para desistir quando...
Morava também aqui perto um senhor que atendia pelo nome de Ze do Isa, que também era um alcoólatra, amigo de Divino e sua família, penso até que tinha um grau de parentesco, ainda que fosse longe. A muito tempo que eu falava como Ze sobre Alcoólicos Anônimos, ele nunca aceitou. A última conversa que tivemos, ouvi a seguinte resposta: _Não perca o seu tempo comigo, meu tempo já esta esgotado. _ No dia seguinte o barracão do Ze não abriu a sua porta. Fiquei muito preocupado, chamei alguns dos moradores da comunidade, fomos até a casa, eu subi no telhado e retirei algumas telhas, ele estava caído no chão, entrei , abri as portas, pude então constatar que aquele corpo já não tinha mais vida. Chorei muito, culpei até a Deus por não ter me ajudado, eu acreditava que ainda o livraria daquela terrível maldição. Acho que ele deve ter sofrido muito, pois defecou nas calças. Depois dos procedimentos precários, eu dei um banho nele, troquei as suas roupas, penteei os seus cabelos, para que ele tivesse um funeral digno.
Divino e família vieram para o sepultamento, levei-os até o caixão e disse com certa revolta, nervoso mesmo: É assim que vocês querem acabar, me ajude, eu não quero sofrer mais enterrando as pessoas que eu tanto amo. Comecei a chorar. Eles me abraçaram e prometeram acompanhar-me para uma sala de recuperação. E o fizeram. Isto aconteceu no final de 1987. Daí para frente foram anos maravilhosos, sem bebidas, sem brigas, em franco desenvolvimento espiritual e material. Ano seguinte eles colheram 40 sacos de feijão, eram tempos prósperos. Reformaram a casa, colocaram luz elétrica, fizeram banheiro com chuveiro, compraram televisão onde passavam horas assistindo as novelas e os jornais. Quanta felicidade! Dona Raimundo colocou ate uma prótese dentaria. Foram dez maravilhosos anos. Eu agradecia a Deus por aqueles tempos. No final de 1998, o senhor Divino adoeceu gravemente. Fora quase 30 dias de CTI. Eu não queria vê-lo naquele estado, por isso, eu sempre arranjava uma desculpa para não visitá-lo. Dia 31 daquele mesmo mês, não tive como evitar, ele querida ver-me. Fui ao hospital, entrei no cti, começamos uma animada prosa. Ele me disse varias coisas, que ele achava que eu deveria saber, fez alguns pedidos fáceis de ser atendido. Sai dali de alma nova, esperançoso na sua recuperação. Cheguei à casa todo feliz. Poucas horas depois me ligaram do hospital, ele havia falecido. Não me revoltei, agradeci a Deus por ter nos dado tanta felicidade, o álcool não conseguiu apagar o nosso sorriso. Fui ao armário, peguei o meu melhor terno, eu mandei que vestissem nela para o funeral. Aquele foi o seu penúltimo presente.
Continuei a amizade com a família. Dona Raimundo e o seu filho mais velho, Luiz, faleceram cinco anos depois. Remilson, ainda esta vivo e forte, ele é deficiente mental, mas tem uma vida bem perto do normal.
Só entendemos as razoes de Deus, após as conclusões dos fatos.
Hoje faz exatos 14 anos desde o seu passamento. Espero que o Divino, Dona Raimunda e Luiz, estejam onde estiverem , saibam que aqui ainda existe alguém que muito os amam. Divino, este sim será o seu ultimo presente.
Antônio José Tavares. (Tonho)