Por trás de um sorriso.
Uma dolorosa ressaca me arranca dum desmaio do qual jamais queria despertar. Está escuro lá fora, imagino que deva faltar umas duas horas até o amanhecer, meu celular apita, acusando o recebimento duma mensagem; são sete da noite. Esfrego os olhos ardidos, afago a cabeça que lateja, tusso e sinto uma arranhar nos pulmões, meu estômago redemoinha; engulo a ânsia e tento ler a mensagem que chegou.
A vista embaçada e a mente turva fazem que seja um hercúleo desafio decifrar o que as letrinhas escuras sobre o fundo irritantemente iluminado do aparelhinho dizem, me sinto como se decifrasse hieróglifos há muito perdidos; rio do pensamento e sou recompensado com outro acesso de tosse caustica. Acabo conseguindo compreender o que me mandaram, sem alegria deponho os pés no chão e pouco depois cambaleio até o banheiro. Lá jogo água fria no rosto e sem despertar maldigo a vida; o telefone toca.
Deixo que a música clássica que escolhi como toque terminar e ceder cortesmente seu lugar para um muito bem vindo silêncio enquanto busco algo de bom no rosto refletido no espelho; não encontro nada. O aparelho torna a tocar, irritado me arrasto de volta para o quarto e o rosto sorridente dum amigo aparece na tela do celular. Atendo a porcaria.
-Opa.
-Dae piá, tudo bem?
-Maravilha- digo engolindo um punhado inconveniente de vômito azedo que tinha subido pela minha garganta – diga aí.
-Só queria confirmar, oito e pouco no shopping?
Puta merda, a porra do shopping.
-Sim senhor, preu pegar a amiga baranguenta da tua quase namorada.
Riso vem do outro lado da linha.
-Cara, não fale assim.
-Pra ela não, pode deixar, mas sabe que depois dessa eu posso pelo menos filmar a lua de mel né?
-Uma breve pausa.
-Cara, como você é idiota! – Mais riso.
-Porra, nem pedi pra participar- crio um silencioso silêncio – ainda.
Mais um breve acesso de riso.
-Te encontro lá.
-E me paga um chope.
-Pago.
-Senão não encaro a baranga.
-Sério...
-Sou um idiota – interrompo-o – já me disseram isso, mas vou terminar de me arrumar aqui e to indo pra lá.
-Tá certo.
-Aquele abraço.
-Outro.
Largo o telefone na cama e aos tropeços corro de volta ao banheiro e despenco em frente ao vaso, convulsiono e vomito até que pontos negros passam a permear a periferia da minha visão. Meu cachorro late reagindo aos sons que faço, cuspo mais um pouco de bile ardida e amarga como remédio estragado que me incomodava, esfrego os dentes sujos com uma língua grossa e torno a cuspir.
Tonto e fraco me enfio debaixo do chuveiro. A água quente relaxa meus músculos e percebo o quanto estou exausto, minhas pernas tremem, encosto as mãos nas paredes e por pouco não me entrego à escuridão que ameaça abraçar-me num desmaio que seria deveras agradável. Resisto à tentação e me lavo numa calculada lentidão, aproveitando o calor que escorre sobre mim e tentando lembrar da última vez em que realmente dormi, em que não despertei mais cansado do que quando deitara.
Toalha, escova de dentes, guarda roupa, cansaço tristeza, dor e logo estou no carro. Quase apago novamente, percebo que esqueci a chave em algum lugar, num laborioso caminhar volto para dentro e chafurdo pela casa em busca da maldita chave. Antes de encontrá-la acho uma garrafa duma vodka não muito boa, com três dedos de líquido ainda nela, que vão-se em dois goles e meio. Sinto a bebida destilada calcinar do esôfago ao estômago, mas é apenas dor e fogo, a ânsia foi-se.
Sem perceber como encontro o que procurava, e um tanto tonto e anestesiado dirijo até o local marcado. Chego lá mal conseguindo parar em pé, com alguns minutos de sobra antes do horário combinado, aproveito e me apresso em comprar um copo de chope. Sento e em grandes goles engulo metade do que preenche o copo plástico, o mundo literalmente roda; minha mente parece um minúsculo carrossel que esconde meu sofrer, carrega minha dor e insiste em manter-me triste.
Quando vejo meu amigo se aproximando, de mãos dadas com uma garota de aparência feliz, e uma outra ao lado dela, penso em como já passei, há tempos, do que imaginava ser o limite da minha resistência. Lembro que me ofereci para ajudá-lo com o que precisasse, e contra todo meu desejo de enfiar-me num buraco, simplesmente deitar e deixar-me morrer, é o que faço.
Dou-lhe um abraço, um casto beijo no rosto de sua companheira, outro na segunda moça, e quando perguntam-me como estou respondo sorrindo:
-Se melhorar estraga, e aquele chope?