A vida aos pedaços

É de se duvidar da salvação da alma daqueles que recusam todo e qualquer panfleto que é oferecido nas ruas. Quase todo dia, um jovem me entrega a propaganda de uma autoescola. Ele já me conhece de vista, e eu já sei exatamente do que se trata o papel. Não estou interessado na sua autoescola. E, no entanto, todo dia, pego o panfleto. Pego porque sei que ele precisa que eu faça isso - não é por outro motivo que me agradece. Em sua jornada de trabalho, ele precisa se livrar dos papéis. Pode jogar todos numa lata de lixo ou pode oferecer um para cada pessoa que passa. Tendo eu braços perfeitos e saudáveis, não me parece grande esforço esticá-los por um momento - e, em seguida, esticá-los outra vez para jogar o papel na próxima lata de lixo.

Pessoas há, no entanto, que enxergam no panfleteiro o anti-Cristo. Ao ver que um papel está sendo oferecido, sentem-se ultrajados como se fosse uma ofensa pessoal. E, por isso, não apenas se recusam a pegar como inclusive fazem cara feia - isso quando não resmungam algo. Existem outros que acreditam estar ajudando se apenas sorrirem e falarem “não, obrigado”. Ora, a simpatia é um bom pagamento, mas não resolve o problema do panfleteiro em se livrar dos panfletos. Quem consegue ser simpático ao negar, será mais ainda ao aceitar - e isso não causará nenhum grande esforço nesse mundo cristão.

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Sou cristão, mas sei que nem sempre fazemos o que convém. Por vezes, estamos mais preocupados em receber uma bênção do que em ser uma. Mas eu caminhava de manhã cedo, e o sol já estava quente. Ia ao trabalho e me preparava para atravessar uma rua. Ouço uma buzina e então vejo dentro do carro um homem que trabalhava numa lanchonete no mesmo prédio que eu - estive lá pela última vez há uns dois anos, sem nunca ter trocado palavra com ele. Mas ele me reconheceu, imaginou que eu também estava indo para lá, e me ofereceu carona - aquele desconhecido.

Entrei no carro e começamos a conversar com naturalidade, como se já tivéssemos feito isso alguma vez. Começamos falando do tempo em Brasília e fomos parar nas mudanças climáticas, concordando que os descrentes precisam rever seus conceitos. Ele lembrou algum episódio recente na Síria, ou em outro lugar quente pra burro, onde simplesmente nevou. E nisso gastamos os cinco minutos que levamos até chegar ao nosso prédio, quando então me despedi daquele pequeno homem que, ainda em nossos dias, é capaz de ajudar pessoas que não conhece.

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Eu também não conhecia a garota japonesa que me abordou assim que parei para tomar água na Bienal do Livro de Brasília. Toda tímida. Perguntou se eu estava interessado num livro de poesias. Eu carregava uma bolsa numa mão e um copo d’água na outra. Desajeitado, tentei pegar o livro que ela me oferecia. Ela disse que estavam aceitando contribuições. Achei aquilo bonito – e achei ela especialmente bonita também. Quis ajudar e tentei tirar algo do meu bolso.

Mas sou um desastre, derrubei o celular, quase derrubei o livro, o copo, a bolsa, tudo. Meio sem jeito, ela quis me ajudar. Recusei e enfim dei algum dinheiro. Ela agradeceu e, antes de nos despedir, tivemos ainda a chance de trombar um no outro. Seríamos um ótimo casal.

milkau
Enviado por milkau em 31/10/2012
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