Vamos soltar o monstro!

Outro dia vi uma cena.

Descendo de uma ladeira, forte, torto, cara ruim, o suor lhe cobrindo o rosto, nesse sol de 38 graus, vinha um monstro. Arrastava um carro de mão, em passos firmes, barulhentos e – um toc-toc – ensurdecedor. Trazia uma grande quantidade de areia, juntamente com dois sacos de cimento completando a carga. Parecia mais um treinamento, talvez ele fosse lutar numa arena cheia de leões famintos – ou talvez ele próprio fosse o leão. Não, sem chance, estava mais para rinoceronte. Pelo menos o corpo robusto, cheio de músculos e veias saltando pra fora, era um ótimo banquete para os tais leões. Era comida pra mais de mês.

Mas para meu espanto o monstro parou. Limpou o suor, colocou a mão no bolso traseiro da calça, tirou um papel, tornou a procurar algo, agora no outro bolso; retirou um pacotinho laranja, logo em seguida veio um isqueiro, e depois tudo aquilo, menos o isqueiro (vai saber!), se transformou num majestoso parronca (um cigarro feito de fumo, caseiro). Sentou. Ouvi sussurros ás minhas costas. Varias pessoas observavam a cena; uma mulher deixou cair uma sacola de compras, outra sacou o celular e começou a tirar fotos, um homem se desequilibrou da bicicleta, acertando em cheio o engraxate, que nem saiu do lugar. Toda a rua parou pra ver aquela cena esquisita.

Como aquele monstro (que trabalhou na construção das pirâmides do Egito, que lutou no Coliseu, que veio nas caravelas, que ajudou na construção do Titanic, que deu uma maozinha para erguer a Torre Eiffel, que descarregou sacos e mais sacos de cimento na construção do Maracanã, sem cansar) podia ficar exausto com dois, DOIS, sacos de cimento e um pouco de areia?

Algo estava muito errado.

Foram modificados, geneticamente, para agüentar de tudo.

Mudos.

Surdos.

Cegos.

Burros.

E tantos outros os.

O fato é que o monstro ficou de pé; rosto mais alegre. Tirou o boné, exibindo o inicio de uma calvície. Recolocou tudo num bolso, rasgado. Limpou o suor com as palmas das mãos, e logo em seguida as juntou, como se as lavasse, ou como se passasse um creme hidratante – ou mesmo um perfume. Pegou o carrinho e se mandou. Desceu com tudo, como um menino que desce a ladeira numa bicicleta (com esse músculo acho que não conseguiria) sem freio. A vida voltou ao normal.

Pensei em todos os outros monstros da cidade; os lixeiros – os da prefeitura e os obrigados -, os peões que descarregam caminhões, os mendigos, os bêbados, os cachorros vira-latas, os drogados, o menino pedindo esmola no sinal e tantos outros.

Logo voltei para uma semana atrás, quando estava lendo o romance Frankenstein de Mary Shelley. Não na historia em si, mas em alguns fatos; o monstro é sempre agredido pelos humanos, vive isolado, foi abandonado pelo o próprio criador (o tal Frankenstein é o criador, e não o monstro, como algumas pessoas imaginam). O livro de Shelley (que intimidade!) é cheio de criticas. A relação entre criador e criatura é mais visível, seguida de discriminação, o poder da humanidade sobre a natureza, injustiça, preconceito, ingratidão e obvias implicâncias religiosas. Alguma coisa em comum com a sociedade de hoje?

A primeira adaptação cinematográfica aconteceu em 1910, pelos Edison Studios – Foi produzida por Thomas Edison e trazia Charles Ogle no papel da criatura. Uma das mais famosas transposições do romance para as telas é a realizada em 1931 pela Universal Pictures, dirigida por James Whale, com Boris Karloff como o Monstro. Esta adaptação deu a aparência mais conhecida do monstro, com uma cabeça chata, eletrodos no pescoço e movimentos pesados e desajeitados (apesar do livro descrever a criatura como extremamente ágil). Este filme tornou-se um clássico do cinema. O romance Frankenstein ainda serviu como inspiração para o filme Edward Mãos de Tesoura (1990), de Tim Burton o qual inclui a participação de Johnny Depp como Edward (andei mesmo desconfiado).

Mas muito antes a historia já estava pronta. Estava ali, pra quem quisesse ver, e como ninguém quis, Mary Shelley passou para o papel. Ela se fosse viva estaria extremamente rica, pois sua historia é diariamente adaptada – nos becos, vilas, esquinas, sinais de transito, nas ruas.

Vamos soltar o monstro (no ótimo sentido) que existe dentro de nós, afinal somos iguais, com os mesmos parafusos e engrenagens – e todos nós merecemos um minuto de descanso. E até um parronquinha.

P.S Ontem mesmo vi o “monstro” que inspirou essa crônica, estava indo pegar os filhos na escola.

Ediie Krdozo
Enviado por Ediie Krdozo em 30/10/2012
Código do texto: T3960403
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