Sofá, no lixo, desconfie.
Era tudo rápido. Quando ouvíamos o barulho do portão sendo fechado, do cadeado sendo batido, corríamos, meu irmão e eu, para vasculhar o lixo da vizinha. Isso mesmo, o lixo, nossa diversão. Olhávamos para todos os lados da avenida, caminhando na ponta dos pés, para chegar perto das sacolas de supermercado. Sacolas cheias, não de compras, mas de enigmas e papel higiênico sujo. Num primeiro momento a agarrávamos e colocávamos bem próximo da porta de casa, e depois corríamos com ela e despejávamos todo o seu conteúdo no meio da sala. Era tudo secreto, nem nossos pais sabiam desse ato de rebeldia — dessa falta de higiene, dependendo do ponto de vista.
No chão havia variados objetos; anjinhos decapitados, cartões postais antigos, agendas novinhas, provas escolares, Xerox de documentos, currículos, canetas, lápis, pincéis, embalagens de arroz, café, manteiga, leite e a parte mais nojenta que era a dos papeis higiênicos. Eu era o mais sonhador, sempre via aquilo como um ato de espionagem, como estar entrando em uma aventura. Meu irmão só queria achar algo de valor e pronto, acho.
Houve um tempo em que vasculhar o lixo da vizinha se tornou vício. Esticamos para “o lixo da vizinhança”, em qualquer horário do dia, em dias de lixo, estávamos atacando alguma lixeira. Saiamos como se tivéssemos acabado de fazer compra, assobiando indiscretamente. Teve um dia que fiquei de cama, gripe braba. Meu irmão saiu cedo, e voltou logo em seguida, suado, ansioso. Disse que achou uma coisa de valor, e que estava em uma calçada, mas era muito pesada. Decidimos levar o carro de mão. Quando dobramos a esquina, para o nosso espanto, além de um, havia dois. Dois sofás, nem novos nem velhos, jogados para fora da casa. Encaramo-nos e corremos de encontro aos prêmios. O sofá não era muito pesado, e foi fácil colocar no carro de mão. Partimos rapidamente, trocando de condutor, quando o outro cansava.
Nem preciso falar da nossa alegria. Agora iríamos procurar lixo todo dia.
Mas nem chegamos a colocar o prêmio dentro de casa; um carro de policia parou bem próximo da gente. De dentro dele desceu uma mulher — dramática — gritando e chamando a gente de ladrão. Contamos nossa versão, e ela não acreditou. E ainda fez pior; disse para deixarmos o sofá, no mesmo lugar, e do jeito que estava. Lá fomos nós. E adivinha? A tal rua estava cheia de gente. Ela deve ter feito um escândalo; Agora eu sei como é sensação de “olhos penetrantes”, que alguns autores contam nos livros. Os olhares me rasgavam a carne. Estava com raiva — da mulher, do meu irmão, daquele povo —, mas caminhando tranqüilamente. Depois de ter colocado o bendito sofá no lugar (o outro já não estava lá, para a própria segurança ), saímos rapidamente da cena do crime.
Esse foi um dos piores dias que tive. Nunca me saiu da cabeça; se passo vergonha, jamais esqueço. Desisti dessa vida. Desisti por alguns meses. Encontrei um saco cheio de livros — nesse dia achei um livro sobre cinema nacional, minha paixão — e resolvi voltar a assaltar lixeiras. Mas passei a desconfiar de certas coisas nas calçadas. Sofá, no lixo, desconfie. Sofá nunca mais!