O Anônimo – Uma Noite Alucinante

Um pequeno relato

Se você está lendo isso, é porque já não estou mais entre os vivos.

Entreguei-me – obrigado – aos costumes modernos. Comprei uma raquete-mata-mosquito! Não sei se esse é o nome, mas me veio na cabeça e achei bonito. Apropriado. Acontece que hoje mesmo perdi a paciência. Coisa que já é difícil de achar, essa paciência. Com três dias de atraso, eis que o pedido chega; uma raquete verde-limão, bonita que só. Primeira coisa que fiz foi colocar na tomada, para carregar a bateria. Fiquei ansioso, esperando a noite chegar, e, incrivelmente, desejando pelo o barulho chato das muriçocas passando perto do meu ouvido. Que masoquismo!

Enfim estava tudo terminado, e começado; terminado de carregar a bateria e começado aquele barulhinho chato. Comecei uma luta mortal com os minúsculos seres, vários corpos voando, pipocando, ricocheteando, uma verdadeira batalha, digna de uma história de Tolkien. Foi uma grande vitória, mas desconfiei de uma guerra ainda maior. Deitei, depositei minha espada no criado mudo, liguei o pobre e empoeirado ventilador e me embrulhei completamente. Cochilei.

A paz não durou muito. O barulhinho chato recomeçou. Desembrulhei-me e fiz uma coisa errada; tentei falar. Já notaram como elas se juntam, e quase entram, quando abrimos a boca? Nunca entendi o porque disso. Mas é nojento, garanto. Acho muito difícil encontrar alguém que não tenha passado por isso. A batalha recomeçou; zap-zap em todas as direções. Estava satisfeito, pela primeira vez, de ter comprado algo pela internet. Nem mesmo sei por que comprei justamente pela internet, já que na quitanda, aqui ao lado, vende aos montes. Deve ser o meu lado consumista — ou masoquista. O problema veio em seguida; uma forte dor no braço. E já era tarde, e precisava acordar muito cedo. Tive uma idéia-quase-genial! Peguei uma linha bem grossa, amarrei no buraquinho do cabo da raquete, amarrei a outra ponta no caibro — aquela madeira fina que sustenta o telhado. Não sabia o real sentido daquilo, mas um esbarrão o fez ir de um lado para o outro — um pêndulo perfeito. Liguei e estava pronta minha armadilha. Meu sofrimento só aumentou; do nada, milhares de bombas, fogos, balas, canhões e tudo que havia de explodir, explodiu próximo ao meu rosto. Acordei atônito.

Milhares de muriçocas estavam em cima do meu lençol; “Entre mortos e feridos, salvaram-se poucos!”. E eu era um deles. Arranquei o pêndulo e arremessei longe. Na outra cama, claro. E decidi deixar que os poucos que sobraram viessem me chupar o sangue. Uma forma de apaziguar os ânimos. Elas, muriçocas, não vieram logo; o que me permitiu um sono tranqüilo. Sem tiroteio e lutas épicas.

Acordei bem cedo. Tirei o lençol de cima do meu rosto, desliguei o ventilador, sentei na beirada da cama e esperei meu cérebro funcionar. Não demorou muito e levantei; abri a janela, e, para meu espanto, o lençol que era branco, estava cheio de manchinhas vermelhas — parecendo sarampo. E corpos ensangüentados, do meu sangue, espalhados. Uma cena chocante.

Comecei essa carta no local onde trabalho. Não conseguia parar de pensar em todo aquele cenário de guerra. Já estou no meu quarto, comprei lençóis novos e também incensos. Só vejo uma muriçoca sobrevoando minha cabeça. Tenho certeza de que haverá mais uma batalha hoje à noite; mas deixo esse relato escrito. A raquete continua aqui do meu lado. Espero não ser crucificado — no fundo mereço — por ONGs que protegem mosquitos indefesos. Foi um ato impensado e cruel.

— Anônimo.

***

Uma pequena versão para o que aconteceu em seguida:

O anônimo estava sentado na cama; acabara de ligar o PC e viu que sua carta já rolava internet abaixo. Não estava morto, como já notaram, mas estava quase morrendo — de vergonha. Saiu apressado para trabalhar e nem lembrou que era dia da empregada fazer a faxina. Pois ela chegou, espanou, varreu, juntou o lixo, passou pano, lavou a roupa, a louça, o terraço, colocou o lixo fora, tomou banho, fechou o portão e foi embora. Eis que chegou um cachorro — rasgou o saco de lixo, achou um couro de frango e correu alegre. Veio o vento e levou a carta para o meio de um grupo de adolescentes. Um deles riu e o papel foi passado para todos da roda. Em minutos estava tudo na internet. Virou um sucesso. E assim surgiu um monte de “anônimos”, vindos de todos os cantos. O anônimo, esse que está sentado na cama, está pensando seriamente em se juntar aos seus iguais, assim ninguém vai zombar de sua cara.

***

P.S a empregada levou uma bronca, o cachorro foi pego pela carrocinha, a raquete fica sempre em cima do criado mudo, e, ele nem desconfia, mas há uma muriçoca vigiando-o. Acho que vão acabar descobrindo sua identidade secreta, mais cedo ou mais tarde. Não posso negar que fui um dos tantos anônimos — fiquei com inveja da criatividade do autor. Até agora não se sabe quem é o tal desafortunado.

Ediie Krdozo
Enviado por Ediie Krdozo em 30/10/2012
Código do texto: T3960400
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