Almoço de Domingo
Para vovó,
que me deu o prazer de viver – mais ou menos – essa pérola familiar.
Era um daqueles almoços dominicais onde a família estava toda reunida; as tias recém grávidas, os tios piadistas, os primos chatos, a velha briga pela herança e vovó, tranqüila, temperando o frango do dia. Claro, estava escutando a conversa, a divisão de sua caveira. Mas hoje ela vai se vingar. Pelo menos é o que esta pensando agora, enquanto joga umas pitadas de sal na carne moída. Tem aquele sorriso, agora maléfico, de gente idosa, com os lábios pra dentro da boca, onde antes havia uma dentadura. O saquinho de sangue, usado para fazer o frango-ao-molho-pardo, lhe deu uma engenhosa idéia. Ia morrer. Exatamente; seu pulmão ia explodir, expelindo sangue pra todo lado, na cara de todo mundo. Tudo isso ela viu, naquela bolinha plástica.
Trancou-se no quarto. Deixou a família no jardim; tomando suco de laranja, uísque caro, cerveja preta e chá. Todos numa roda, uma reunião às suas costas. Pegou a velha maquina de escrever, uma folha em branco e começou a datilografar um testamento. Tudo tinha que sair perfeito. Escreveu coisas absurdas, improváveis, propriedades inexistentes, bens imaginários; a velha estava animada. Escreveu até um esboço do plano, que achei anos depois. Voltou pra cozinha, tirou o frango do forno, preparou o cachorro quente, pegou o bolo de laranja, o arroz branco, o colorido, tudo o que era de direito num domingo. Domingo de vingança. Domingo de festa. Pretendia jogar o carro no rio, alugar um apartamento, mudar de nome. Quase uma Agatha Christie do interior.
Fez a oração — “encomendação do corpo”, pensou —. Sentaram.
- Primeiro as grávidas. – Disse uma grávida, piscando pra outra.
- Depois as crianças! – Gritou um grupinho de crianças, sentadas em cima de almofadas colocadas no acento cadeira.
- Depois os homens da casa. – Disse o resto.
Essa era a hora perfeita. Fez um garfo cair, propositalmente, seguido de uma barulheira. Abaixou para pegar, ouvindo comentários sobre velhice e internação em clinica de repouso, e assim poder alcançar o saquinho no bolso. Pegou. Sentou-se direito, olhando todo o batalhão atacar suas panelas. O vento entrou pela janela, batendo na sua boca sem dente. A dentadura! “Cadê a dentadura?”, quase gritou, quando colocou a mão na boca, tentando despistar. Era tarde. Derrubou o garfo de novo. Abaixou. Pegou o saquinho. Mordeu — com a gengiva? —. Não sangrou. Tentou de novo, achou uma pontinha do que já foi dente. Pronto. Começou uma tosse seca. Tudo pronto para a explosão. Cinco, quatro, três, dois, um…
Um grito inesperado, um “Ahhhh!” assustador. “Que nojo, uma dentadura no arroz!” A grávida caiu pra trás, os homens correram, as crianças, presas nas cadeiras, só choravam. Vovó sentou direito, boca suja de sangue, assustada. Jogaram a panela longe. A dentadura caiu no meio da cozinha. Caiu juntinha. Parecia rir de todos. A palavra nojo reinou naquele dia. Vovó, parecendo ter saído de um filme B, começou um riso abafado, virando gargalhada, que a vizinhança inteira ouviu. E eu, preso na cadeira, antes chorando, acabei rindo também — um traidor pros outros —.