Caretas, café e eles
Café, muito café - era tudo isso que ela precisava. Nada sabia, só sabia que sentia algo ruim no peito, exatamente ali onde um coração batia - mesmo que isso soasse clichê demais. Ela, honestamente, queria dormir, mas também queria café, queria ele, queria um homem. E esse homem não se chamava café.
Ela sabia que o relógio estava fazendo aquele seu barulho irritante, sabia muito bem o que aquilo significava. Certamente perderia o voo, dai então teria uma desculpa para não vê-lo, para não resolver tudo aquilo que ficara intragável, que não descia de forma alguma. Porém não sabia o que se passava naquelas curvas da inteligência que ela tanto admirava, pois ela não conseguia abrir-se ao meio e ver o que ali existia. Nada estava muito claro, apenas a angústia e a falta do café.
Desceu, pegou a xícara, serviu-se. Bebeu um gole, dois. Respirou. Café forte, daqueles que de tão fortes até cremosos ficam. Fez uma careta gostosa. Engoliu o amargo. Doce. Salgado. Tanto faz, era algo que não matava a sede, mas matava o sono. Lembrou-se então daquele sorriso antigo, meio oriental, daqueles lábios carnudos, daquele corpo bonito. Tremeu. Algo havia acordado em seu psiquê.
Pensou em ligar, mas lembrou daquele dia em que ele implorou para que ela não o fizesse, para não machucá-lo. Quedou-se imóvel no móvel da cozinha. O móvel movimentou-se, fazendo-a despertar daqueles pensamentos tenebrosos. Olhou pela janela, viu o sinal. Nada nem ninguém entenderia, deixou para si, nos seus pensamentos póstumos, nas suas duas órbitas oculares. Deixou o ósculo escondido por entre as folhagens... Para que ninguém o admirasse, por um simples obséquio ao outro, apenas para não machucá-lo.
Bebeu mais alguns goles, enquanto dirigia-se para a sala de estar. Lá encontrou canetas coloridas, papeis recortados, jornais amassados e livros abertos no tapete... Não lembrava-se de lá ter estado mais cedo, tampouco de ter lido algum daqueles livros. Apenas lembrava-se da felicidade triste que lá existia, olhou para o canto onde ficava o piano, recordou as melodias tocadas. Fechou os olhos, suspirou serena. Bebeu. Like someone in love...
Quem diria que aquele monólogo iria acontecer? Ninguém poderia ao menos saber que tal coisa estava acontecendo. Deveria ser um diálogo, mas ela - tão egoísta - proferiu as palavras sozinha, junto de sua xícara de café cremoso. Nada que ela dissesse para si mesma lhe convenceria. Ela se conhecia, sabia como combater a si mesma. Nada lhe faria mudar de opinião, nem ela mesma. Um de seus lados queria estar assim, o outro queria apenas fugir, meter-se dentro de um piano - o que poderia ser feito com facilidade.
One day, it will happen. Ele disse que iria apenas tocar. Ela falou que ia escrever uma crônica, um artigo ou apenas o que lhe viesse a mente e que depois lhe ligaria. Ele pediu pra que ela não o fizesse, que seria tortura demais, disse que iria apenas tocar. Ela lhe mandou pra um lugar obscuro e sumiu. One day, one day, when you're up to it. Ela queria entendê-lo, entender sua dor, mas não conseguia. Sua incapacidade de entender sentimentos lhe deixava com um sentimento estranho, que ela não entendia. Nada muito difícil de se entender.
Bebeu mais alguns goles, estavam ficando frios. Sentou-se entre as almofadas, ou melhor, jogou-se enquanto segurava firmemente sua xícara - ainda restavam queridas gotas. Pensou em dormir, mas se dormisse o líquido cairia. Pensou em acordar, mas se acordasse ligaria. Pensou em sair voando - essa foi a melhor ideia que teve. Ajeitou-se, bebeu as ultimas gotas. Aquelas foram como o final de um veneno. Arderam, gelaram, tocaram-lhe a goela, depois caíram. O mal estar chegou, o enjoo após 17 xícaras.
Deitou-se, atordoada. Pensou por um instante em ligar - mas o celular estava distante. Ele seria eternamente distante. Olhou para as estrelas, distantes também. Olhou para seus seios descobertos, amou-os. Olhou, olhou... Fechou os olhos, apagou.