Batalha inglória
Batalha inglória
Estou cansada dessa luta implacável, que travamos todos os dias, meu corpo e eu... Mais cansada ainda, porque no final das contas, quase sempre a vencida sou eu. E quem vence, na maioria das vezes é esse corpo que eu cada vez reconheço menos. Antes, vivíamos em sintonia, tudo que planejávamos era possível, nada era entrave para a nossos desejos e força de vontade. Aos poucos, fomos nos distanciando, minhas vontades foram sendo relegadas, meus sonhos ficaram distantes e o que antes era tão fácil, de repente foi ficando praticamente impossível. Tudo isso porque de repente, meu corpo foi adquirindo vontade própria. Isso mesmo, emancipou-se, declarou independência de minhas vontades e agora só faz o que lhe convém, sempre alheio ao meu querer.
Antes eu abraçava a liberdade, dançava com o tempo, caminhava nas nuvens, corria pelas ruas, não havia limites para as distâncias que eu percorria. Agora qualquer corridinha me cansa e ele logo me avisa para parar. Caminhar é um suplício, logo as dores começam a sinalizar, minhas pernas pedem socorro. Subir escadas, ou qualquer elevação de terreno é um desafio que me causa pavor, só de pensar na escalada. Dançar ficou só na saudade, como os bailes de antigamente, onde só de ouvir as músicas dos meus anos 60 e 70 meu corpo como que por encanto, começava a se mexer, sempre no ritmo da minha alegria e felicidade. Minha memória, antes um prodígio, está vacilando, tendo uns apagões de vez em quando, coisa que não me perdoo. E a vontade de sair de casa, visitar amigos e lugares? O danado tem preferido ficar em casa, curtindo uma cama, espichado frente a uma televisão, como se o mundo lá fora fosse um desafio. Tenho vontade de voar com os meus pensamentos, alcançar as estrelas com as mãos e sair catando aventuras pelo caminho. Ainda não me libertei da insensatez dos jovens nem da mania de construir castelos. Mas esse corpo danado não quer saber de nada que a minha mente ainda menina não cansa de sonhar. O coitado envelheceu, está começando a entregar os pontos e a menina lá dentro dele, continua rebelde e idealista, fazendo planos que infelizmente a vida não lhe dará tempo para realizar. Nem tempo e nem coragem. Mas a menina não se entrega, apesar de esconder de todos, a traquinice de seus desejos. Trancada no anonimato de uma vida sem graça, ela faz de conta que tudo valeu a pena, apesar de se rebelar de vez em quando. Entre sabedoria e tolices, ela segue insistente na tentativa de dar alento ao suporte que lhe dá vida. Mas como essa é luta é pesada. É por isso que vivemos nos digladiando assim, de vez em quando procurando alento em vias medicinais para nos sintonizar.
Haveremos de terminar assim, lutando bravamente para sobreviver em tempos diferentes, uma vida dividida, descompassada cronologicamente, duas linhas paralelas que se distanciam porque uma vai pesando mais que a outra... Até que um dia, inexoravelmente irá chegar o silêncio, e a eterna menina que habita dentro de mim irá sucumbir sufocada no corpo que irá se render ao tempo. Mas ficarei feliz se ao final, no inevitável encontro do adeus, alguém se lembrar de mim e dizer que apesar de esmorecer, meus sonhos jamais irão morrer. A menina travessa cuidou de gravar cada tudo em verso, quando brincava de poesia...