O Celular Sangrento
O CELULAR SANGRENTO
Não é brincadeira! É coisa orquestrada; pensada pra ser tocada assim. Com a partitura ilegível, os instrumentos desafinados e os músicos sem maestro; sem norte. Eles batem sempre na mesma tecla; sopram a mesma nota; tangem a mesma corda. Oferecem-nos o que não queremos, pois o que oferecem-nos é muito ruim, sem nenhum atrativo. Eles são uma praga subdesenvolvida, sem vacina. Eles são os vendedores e seus produtos e serviços que não queremos.
É isso que acontece por todo esse Brasil de ai meu deus e de pindobas. Diariamente somos cercados por “limpadores” em quase todos os “faróis” (“limpadores” e “faróis” é a mesma coisa em todas as cidade, mas com nomes diferentes) dos cruzamentos das ruas e das avenidas.Os vidros escuros dos nossos carros que servem para nos proteger dos inoportunos e do sol escaldante, mais atrapalham do que nos ajudam, pois escondem os sinais de um dedo em riste desesperado. Agitado para a esquerda e para a direita, como se fosse um limpador de pára-brisas em alta velocidade, não impede a ameaça.
- “Não” – diz ele inclinando-se para a esquerda. “Não” – diz gritando, para a direita. Inútil desespero. O pára-brisa já está ensaboado.
Na praia, ficamos com o pescoço amolecido, como se estivesse cheio de água, de tanto virar a cabeça para um lado e para o outro, desviando a atenção do que na verdade interessa, para “agradecer” vendedores de tudo e cantadores encantadores de turistas.
- “Não, obrigado”. – nem relógio eu uso!
- “Não, obrigado”. – nem fumo mais. Faz anos!
- “Não, obrigado”. – acho que não fico bem de canga!
- “Não, obrigado”. – CD pirata?
Em casa e nos escritórios recebemos as ofertas que colocam em nossos computadores, nos folhetos e panfletos que entopem nossas caixas postais ou nas dezenas de encartes soltos que caem de nossos jornais (faturar é preciso, saturar a mídia não é preciso) aos domingos, principalmente.
Eles querem que a gente compre a força tudo o que não queremos adquirir de bom grado, e por livre escolha, e espontânea decisão.
Não é brincadeira! Essa insistência contínua é combustível para nosso ódio, para a recusa e para a desistência final. Somos não compradores compulsivos; gente que odeia o assédio e as coisas inúteis que nos oferecem. Uma minoria que cada vez aumenta mais, reunida em grupos de “coisas odiadas”. São grupos de odiadores de atitudes e gestos insuportáveis, como, por exemplo, chamar alguém fazendo psiu; se referir a um objeto como a bichinha – “cadê a bichinha que tava aqui?” Outros grupos odeiam objetos, coisas inúteis como uma folha de papelão sobre os vidros do carro estacionado debaixo de sol a pino para “evitar” o calor; calendário de mesa, relógio de pulso, lenço de assoar o nariz, pochete, lapiseira, talão de cheque, correntinhas e pulseirinhas e outras coisas odiadas, e que sem as quais, podemos passar, confortavelmente a vida toda.
Minha “coisa odiada preferida”, atualmente, é o celular. Pode ser que amanhã eu arranje outra coisa odiada. Não tenho mais telefone celular – depois de possuir uns três - e vejo a vida com intensa alegria e muito mais satisfação como também vejo essa nova situação pelo lado cômico e galhofeiro. Observe a cara de quem lhe pede o numero do seu celular e você responde: “não tenho!” Você verá de tudo; espanto, admiração, condolência, enternecimento, comiseração, piedade, dó. Caras, e bocas em forma de biquinho. Algumas secretárias e recepcionistas também ficam tão confusas diante da resposta inusitada que se atrapalham todas; deixam a caneta cair da mão, enquanto esperam ouvir o numero que você não diz porque não tem, baixam os olhos a procura de um buraco para se meterem dentro. Depois, sorriem com uma das bochechas tremendo, tamanho é o estresse nervoso de que são acometidas. Outras pessoas, disfarçando a surpresa, mudam de assunto imediatamente. “Quem será esse infeliz que nem celular tem?” – cogitam. Sem pensar, todavia, o que para essas pessoas é perfeitamente possível. Cogitam sem pensar.
Somos uma deliciosa minoria, visto assim. A maioria, sabidamente, não odeia o que odiamos com tão reverente desprezo. A maioria cultua, venera e, principalmente, se exibe. Coisa nossa! Senão, deles, os consumirebas.
Tudo o que existe no mundo é necessário. Até o mal. Porém nem tudo é permitido ou convém, como se sabe. Dia desses tentava comer uma salada de tudo o que a terra fornece, numa churrascaria (pra quem não come carne, as melhores saladas estão nas churrascarias, acredite!) quando observei um homem com jeito de executivo recém saído de um MBA qualquer, atacando um pedaço de picanha com a fúria de um visigodo. À direita e a esquerda do prato estavam os... celulares. Dois; um de cada lado. Súbito, um deles chama, tocando uma musiquela boba, certamente baixada da internete. Ele atende, fala alto enquanto corta uma lasca da picanha; mete na boca, fala assim mesmo. Mastiga e fala ao mesmo tempo pondo a língua em perigo. A qualquer momento ela será mordida, pensei admirando um tomate cereja.
Toca outro sonsinho bobinho. Ele larga o garfo e avança para o outro celular. Como tem duas orelhas, lamenta ter uma só boca para tanto uso. Desliga o Nokia, entorta a cabeça pra segurar o Motorola sobre o ombro. E assim, numa fúria frenética, pega um e depois outro e os dois e fala e come; e na agitação larga um deles dentro do prato, e de garfo e faca em punhos, tenta cortar um naco do Nokia. Não consegue; o Motorola chama, o Nokia também; os dois, ao mesmo tempo. Ele, incauto, pega a picanha mete na orelha, grita alô umas três vezes em quanto o suco sangrento e salgado escorre pela orelha e sobre o colarinho branco de sua camisa agravatada.
Levei meu guardanapo a boca, para esconder meu riso e refazer meu canto e reter meu pranto, enquanto olhava para os vegetais que estavam no meu prato esmelinguindo-se de gozo. Olhei para um lado e para outro, e, por um breve momento, pensei ter visto enormes bagres – na verdade só via a cabeça deles - sentados às mesas sonorizadas pelos mais infames tipos de musiquelas. Eram polcas, valsas, mazurcas, marchas, poloneses e até lieds. Soavam desafinadas; niponicamente eletrônicas. Espantado, também me pareceu ter visto que algumas dessas mesas até vibravam em silenciosa convulsão telefônica.