A caixa mágica
Isto aqui não faz muito tempo, mas em certo sentido é pura arqueologia.
Meu namoro com Maria do Carmo não durava uma semana, quando ela cismou que eu devia conhecer seu avô. Havia duas décadas que ele não deixava mais o leito. Na primeira oportunidade, levou-me ao tugúrio do pobre homem, enaltecendo, como todos na família, a extrema lucidez daquele farrapo de noventa e nove anos, que ainda era capaz de soerguer o punho esquerdo ao mais imperceptível solfejar do hino da Internacional. Nessas ocasiões, uma ruidosa manifestação de falsa alegria tomava conta de uma platéia de desmiolados — netos, filhos, genros e noras —, que largavam tudo o que estivessem fazendo na casa para aplaudir freneticamente o patriarca.
Assim que minha namorada nos apresentou um ao outro, ele insistiu em ficar apenas com nós dois no quarto e expurgou dali o resto do pessoal.
Súbito, num fiapo de voz, perguntou conspirativamente à neta:
“Ele sabe da caixa?”
Claro que eu não sabia de caixa alguma, mas ela sorriu-lhe com meiguice e confirmou com a cabeça. Logo percebi que era outro de seus números domésticos.
Tranqüilizado, ele virou o rosto na minha direção.
“Ontem saiu aquela história”, segredou-me.
Olhei atônito para Maria do Carmo. Ela pôs a mão em meu braço e explicou:
“Vovô achava que era só uma invenção dos irmãos Grimm, mas depois começou a ver histórias saindo.”
O jogo parecia forte. Julguei que devia dizer alguma coisa e arrisquei:
“Que bom!”
Dancei feio. O velho começou a estrebuchar como um louco na cama, com falta de ar, e Maria do Carmo inclinou-se para ele, cheia de cuidados, enquanto olhava para mim fingindo contrariedade.
“Não é nada bom, seu bobo”, falou-me, como se estivesse ralhando com uma criança. “Vovô tem medo quando sai aquela história. É a que lhe causa mais medo.”
“Bem”, respondi, tentando mitigar a mancada, “é justamente a única história que não conheço.”
Outra bandeira. O homem quase embarcou dessa vez.
“Então ele não sabe da caixa”, gemeu, encarando com severidade a neta, que entregou os pontos.
O velho comunista, todo contente agora:
“Vai, pega o livro na caixa, conta para ele também.”
Ela fez o que o avô pedia. Apanhou na mesinha-de-cabeceira uma edição dos irmãos Grimm, que abriu automaticamente na página certa e começou a ler, pela enésima vez em sua vida:
“’A chave de ouro’. Num dia de inverno, a terra toda coberta por uma espessa camada de neve...”
O velhinho delirava, feliz, mijando-se todo de alegria.
A Internacional e essa fábula linda com que os irmãos Grimm justificaram para sempre a contação de histórias eram o que ele queria levar para o céu dos socialistas, quando chegasse a hora.
[26.2.2007]
Isto aqui não faz muito tempo, mas em certo sentido é pura arqueologia.
Meu namoro com Maria do Carmo não durava uma semana, quando ela cismou que eu devia conhecer seu avô. Havia duas décadas que ele não deixava mais o leito. Na primeira oportunidade, levou-me ao tugúrio do pobre homem, enaltecendo, como todos na família, a extrema lucidez daquele farrapo de noventa e nove anos, que ainda era capaz de soerguer o punho esquerdo ao mais imperceptível solfejar do hino da Internacional. Nessas ocasiões, uma ruidosa manifestação de falsa alegria tomava conta de uma platéia de desmiolados — netos, filhos, genros e noras —, que largavam tudo o que estivessem fazendo na casa para aplaudir freneticamente o patriarca.
Assim que minha namorada nos apresentou um ao outro, ele insistiu em ficar apenas com nós dois no quarto e expurgou dali o resto do pessoal.
Súbito, num fiapo de voz, perguntou conspirativamente à neta:
“Ele sabe da caixa?”
Claro que eu não sabia de caixa alguma, mas ela sorriu-lhe com meiguice e confirmou com a cabeça. Logo percebi que era outro de seus números domésticos.
Tranqüilizado, ele virou o rosto na minha direção.
“Ontem saiu aquela história”, segredou-me.
Olhei atônito para Maria do Carmo. Ela pôs a mão em meu braço e explicou:
“Vovô achava que era só uma invenção dos irmãos Grimm, mas depois começou a ver histórias saindo.”
O jogo parecia forte. Julguei que devia dizer alguma coisa e arrisquei:
“Que bom!”
Dancei feio. O velho começou a estrebuchar como um louco na cama, com falta de ar, e Maria do Carmo inclinou-se para ele, cheia de cuidados, enquanto olhava para mim fingindo contrariedade.
“Não é nada bom, seu bobo”, falou-me, como se estivesse ralhando com uma criança. “Vovô tem medo quando sai aquela história. É a que lhe causa mais medo.”
“Bem”, respondi, tentando mitigar a mancada, “é justamente a única história que não conheço.”
Outra bandeira. O homem quase embarcou dessa vez.
“Então ele não sabe da caixa”, gemeu, encarando com severidade a neta, que entregou os pontos.
O velho comunista, todo contente agora:
“Vai, pega o livro na caixa, conta para ele também.”
Ela fez o que o avô pedia. Apanhou na mesinha-de-cabeceira uma edição dos irmãos Grimm, que abriu automaticamente na página certa e começou a ler, pela enésima vez em sua vida:
“’A chave de ouro’. Num dia de inverno, a terra toda coberta por uma espessa camada de neve...”
O velhinho delirava, feliz, mijando-se todo de alegria.
A Internacional e essa fábula linda com que os irmãos Grimm justificaram para sempre a contação de histórias eram o que ele queria levar para o céu dos socialistas, quando chegasse a hora.
[26.2.2007]