Sorriso fluoxetina

No hospital, enquanto aguardava para ser atendido, Ramon contou quarenta e cinco pessoas na fila, todas com plano de saúde (porque o atendimento do sistema público era em outro prédio, longe dali). Ele estava com a filha de sete anos, que tinha torcido o pé, e queria um médico que a olhasse, pedisse uma radiografia e depois encaminhasse o tratamento que fosse melhor para ela. Ele pagava em dia as mensalidades do plano de saúde para toda a família (uma pequena fortuna) e achava que assim teria garantido o seu direito a um bom atendimento. Doce ilusão.

Depois de ouvir pacientemente o caso de Ramon, a recepcionista disse, com o sorriso mais radiante do mundo: “O ortopedista não atende crianças e o hospital não tem pediatra de plantão”. “Mas como...?”, balbuciou Ramon, sem concluir a frase, espantado com a resposta, mas muito mais com o sorriso da moça, que continuava em seu rosto, iluminado, transmitindo uma paz e uma alegria de viver que, para Ramon, não combinavam em nada com o ambiente que os cercava (e ele até olhou em volta de novo para ter certeza de que a realidade circundante não era a mesma que ele tinha visto refletida nos dentes brancos e brilhantes da recepcionista. Não, não era a mesma: gente gemendo, chorando, crianças no colo queimando de febre, velhos babando e sujos de vômito), mas o sorriso da moça estava lá (e não parecia falso), como se a frase que ela tinha acabado de dizer fosse “Parabéns, o senhor acaba de ganhar um ano de supermercado grátis” ou “Sua sogra ficará um ano fora, viajando pelo mundo”.

Menos de um minuto depois Ramon viu o olhar simpático e sereno da recepcionista se dirigir a outra pessoa, uma idosa muito bem vestida, que perguntou se a sua radiografia ia demorar. A moça abriu novamente seu largo sorriso e disse: “Vai demorar”, frase curta, simples, que se fosse lida num conto ou crônica sem floreios significaria para o leitor o que tinha que significar naquele contexto: tristeza, desolação ou indiferença. Só que, junto com o sorriso doce da recepcionista, parecia querer dizer outra coisa. Ficaria melhor, por exemplo, na boca de uma mãe dizendo para o filho, um mês antes do Natal: “Vai demorar, querido, mas o Papai Noel trará o presente que você pediu, tenho certeza”. E ela ainda explicou a situação para a idosa, sorrindo: “É que nós só temos dois aparelhos de radiografia e os pacientes que não podem vir à sala são atendidos nos quartos e enfermarias, por isso um dos aparelhos é só para eles”. E sorriu de novo, como se abraçasse a velha senhora, consolando-a.

De repente entrou no hospital um jovem todo suado, carregando nos braços um senhor de idade que lutava desesperadamente para respirar. Ao chegar à recepção, gritou: “Meu pai está morrendo, o coração dele... o coração...”, e a recepcionista levantou a cabeça, com o sorriso já aberto, e disse, olhando nos olhos do moço: “Olha, querido, parece que o caso do seu pai é grave, mas o cardiologista só vem amanhã. Não tem cardiologista hoje no hospital”. “O quê?”, perguntou o rapaz, e Ramon viu em seu rosto o mesmo espanto que ele tinha sentido ao ouvir a resposta da recepcionista para o caso da sua filha. E a moça, sorrindo, pegou o telefone calmamente e disse para uma enfermeira do outro lado da linha: “Caso grave, Matilde. É um senhor de idade, parece infarto. Traga uma maca e veja se tem ambulância disponível. Não tem? Nossa...”, e olhou para o rapaz, sorrindo cheia de compaixão, mas sem perder a alegria.

Assim que desligou o telefone, a recepcionista cumprimentou uma outra funcionária do hospital, que parecia ter vindo fazer uma visitinha à colega, mas que, na verdade, queria era um comprimido de fluoxetina, pois ela tinha esquecido o dela em casa. Sorrindo, a recepcionista perguntou: “Sua dosagem é 20 mg?”. “Sim”, respondeu a colega, “todo mundo aqui toma 20 mg, você não sabia?”.

“Então está explicado”, pensou Ramon, e sentiu a filha puxando o seu braço: “Pai, pai... meu pé, pai”. Ele então interrompeu a conversa das duas colegas e perguntou à recepcionista: “E aí, como é que fica o meu caso?”. “Seu caso?”. Ela parecia nem se lembrar mais de Ramon (estava calma como um rio que flui lentamente em direção ao mar), mas de repente sorriu, com os olhos brilhando de alegria, e disse: “Ah, o seu caso... Olha, infelizmente não tem jeito. O senhor vai ter que levá-la ao Pronto Atendimento da Prefeitura (‘que de pronto, o senhor sabe, não tem nada’, completou)”. E sorriu mais, balançando a cabeça de um lado para o outro, como se estivesse pesarosa, mas era puro automatismo. Para ela estava tudo bem, o rio continuava fluindo, todo mundo ia morrer um dia, o universo ia acabar... Era assim e pronto. Para que complicar a vida?

Ramon então pegou a filha, entrou no carro e arrancou em direção ao Pronto Atendimento, com o ódio talhando-lhe o sangue até o último milímetro de veia. Ao chegar lá, contou setenta e sete pessoas na fila, mais da metade em pé, e havia ainda dois mortos: um no chão, jogado num canto como um saco de batatas, e outro estendido em cima de uma maca, como um boneco desengonçado, todo sujo de sangue.

Esperou uma hora para ser atendido pela recepcionista, uma senhora de meia idade que parecia ter brigado com a vida há pelo menos trinta anos e ainda não ter feito as pazes com ela. Quando ele fez uma pergunta, a resposta NÃO! (um “não” grosso e seco) saiu da boca da mulher como uma lufada de enxofre sai da boca do capeta. E Ramon disse para a filha, baixinho: “Essa aí, filhinha, com certeza não toma fluoxetina”.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 20/10/2012
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