Um pouco de Einstein, quase nada sobre fé e, sobre poesia, o de sempre
Durante mais de quarenta e seis anos de vida, presenciei apenas duas situações para as quais não encontrei explicação na racionalidade e nos vários campos de conhecimento, inclusive o das relações humanas.
O primeiro caso envolveu o caráter de um colega de profissão do meu (então) companheiro. No dia e em certo ambiente de trabalho em que me foi apresentado o rapaz, filho de significante pessoa na sociedade cearense, não senti por ele antipatia ou afinidade; conversamos um pouco – ele contando os planos profissionais enquanto eu esperava meu marido finalizar seu turno. Semanas depois, meu companheiro chegou em casa dizendo que lhe havia sido roubado dinheiro da valise, que ficava guardada no armário destinado ao ‘staff’ do hospital. Eu conhecia muitos dos seus colegas de trabalho, mas a imagem do rapaz apareceu nítida e clara na minha mente, como se eu o visse bem ali. Não pensei sobre a necessidade financeira de faxineiros ou ajudantes de enfermagem (ou qualquer outro trabalhador), nem imaginei se era possível alguém de fora, profissional ou leigo, ter acesso ao ambiente exclusivo do corpo médico do hospital em questão – que, diga-se de passagem não era o mesmo onde conheci o rapaz, e, também por isso, nem havia como eu saber se o rapaz estivera escalado para o mesmo local e/ou horário. Não racionalizei: para mim, fora ele. E disse isso a meu marido, sendo o começo da minha fala: “Você vai pensar que fiquei doida...” De fato: “Sem chance! O sujeito é ‘bem de vida’, não tem necessidade de agir assim... Tenho certeza de que foi outra pessoa. Esqueça essa ideia, tá?” Mas foi impossível esquecer, uma vez que, uns meses depois, o sujeito foi pego ‘com a boca na botija’, como se diz por aqui, e seu digno pai teve que ser bem influente, também... “Como você sabia?” foi a perplexa pergunta da vítima; respondi que só sabia, e foi a única resposta que pude dar - como ainda o é.
O outro acontecimento diz respeito à morte de uma pessoa de quem todos gostávamos muito, mas de quem não tínhamos notícias há uns cinco anos. A moça, uma enfermeira calma e apaixonante, havia sido namorada de um colega de faculdade e amigo de meu companheiro; no final de semana em que formalizariam o noivado e seria marcada a data de casamento, o rapaz morreu num acidente estúpido, de forma que (exatamente no dia do meu aniversário) enterramos um homem e uma esperança (e não é preciso dizer que nunca mais tive um aniversário que prestasse). Ela se afastou de nós (éramos três casais de amigos), talvez para evitar o sofrimento mútuo e contraditório das lembranças e da vida que segue. Numa tarde de quinta feira, seca e morna, eu estava ocupada na cozinha quando meu marido chegou e, sem nem me cumprimentar, disparou: “Você não adivinha quem morreu!...” “Fulana”, respondi, já chorando (pelo resto da tarde, também...). Ele - menos atônito - perguntou quando eu ficara sabendo. “Agora.” Eu não pensara nela uma só vez naquele dia, nem num dia qualquer da semana que findava, nem encontrara qualquer parente seu ou amigo em comum; ela não era pessoa cuja morte pudesse ter status de fato jornalístico – nem eu tinha por hábito ouvir rádio ou assistir noticiário local. Soubemos uns dias depois que ela finalmente casara e fora mãe, vindo a falecer vítima de eclampsia, apesar de sua pressão arterial ter se mantido estável durante toda a gravidez e no parto. Meu ex-marido (com quem muito aprendi sobre racionalidade) culpou as ‘estatísticas’: “Isso é o que falamos entre nós mesmos, quando a técnica médica não consegue explicar o fato”, disse, meio sem graça. Eu nunca mais falei no assunto – de novo, não havia o que falar. E ainda não há...
Detalhei os casos porque sou ateia. Isso quer dizer que não creio em qualquer divindade, anjo ou demônio, milagre, reencarnação, carma, céu, inferno ou limbo. E não tenho opinião formada sobre percepção extrassensorial, forças positivas ou negativas, vidas passada, etc.
Percebi minha falta de fé quando entendi que não tinha necessidade de conforto espiritual ou algo equivalente, como me sentir ligada a um ser superior. Também não houve, em minha vida, o que na maioria das vezes acontece com alguém, para proporcionar (mesmo que temporariamente) uma ruptura na fé: perda traumática de alguém amado, sofrimentos extremos de saúde, prisão física ou emocional injusta... Em suma, não perdi a fé: acho que nunca a tive – ao menos, em quantidade e/ou qualidade bastante para a aceitação e permanência de ritos, tão necessários a quem crê.
Apesar de ser do tipo que respeita a fé e até elogia a prática religiosa de outrens (‘não acredito’ é diferente de ‘não existe’, certo?), tem gente que me olha com pena, desgosto, raiva... Até já perdi um namorado!
A maioria das pessoas, no entanto, tenta usar a lógica para me ‘convencer’: “Então, de onde surgiu o mundo? E o universo...? Vieram do nada?! Será que ‘algo’ pode surgir do ‘nada’? Ora, apenas um ser re-al-men-te superior seria capaz de ordenar a natureza... e todas as outras coisas... Já pensou em tudo isso sem ordem?!”
Devolvo também com lógica: “Você acredita na ‘verdade absoluta, universal’?” A pessoa nem pestaneja: “Não creio, não...”
“Mas a verdade universal existe”, argumento. “E é tão somente o conhecimento de tudo o que já aconteceu e acontecerá sobre a face da Terra... e da Lua, dos outros planetas, dos cometas, dos incontáveis espaços sólidos e gasosos do universo. É o que permeia a poeira das estrelas que brilham ou já se apagaram, e os sentimentos de todos que já se foram, que estão e que virão... A verdade absoluta existe, só não é apreensível pelo humano. Você crê que deus existe, mas não crê no que o fundamenta? Isso, sim, é ilógico!”
Aproveito a surpresa do interlocutor e exponho uma teoria à qual tive acesso por acaso, num livro de ficção:a personagem principal, um policial judeu e meio 'durão' de New York, se vê às voltas com crimes realmente estranhos, enquanto tenta administrar uma crise doméstica. Elucidado o caso (corrigindo, concluído o caso), ele, ao vento de vários martinis secos, navega um bocado... E propõe a um desconhecido companheiro de balcão de bar: “Imagine que a perfeição exista; imagine que – por razões que não vêm ao caso – parte da perfeição se desprenda dela... Então imagine que tudo, desde o começo dos tempos e das vidas – e até quando ainda não havia vida! – todas as ações e reações e comoções, todas as guerras e as recompensas, todas as perdas, todo o progresso, toda a bondade e maldade, todo conhecimento; enfim, TUDO, absolutamente tudo, seja o esforço inconsciente, contínuo e desesperado dessa parte desgarrada para se reunir e reintegrar à perfeição”.
Confesso: gosto de causar mais esta surpresa. E arremato: se eu acreditasse em alguma divindade, lógica nenhuma explicaria minha fé; racionalidade alguma explicaria o supremo mistério de esperar em certeza e alegria.
Copiando Albert Einstein, “A mais bela experiência que podemos ter é a do mistério. Ele é a emoção fundamental que se acha no berço da verdadeira arte e da verdadeira ciência. Quem não sabe disso e já não consegue surpreender-se, já não sabe maravilhar-se, está praticamente morto e tem os olhos embotados”.
E - porque coisa boa é para ser copiada, mesmo! - continuo: “Foi a experiência do mistério – ainda que mesclada com a do medo – que gerou a religião. Saber da existência de algo em que não podemos penetrar, perceber uma razão mais profunda e a mais radiante beleza, que só nos são acessíveis à mente em suas formas mais primitivas, esse saber e essa emoção constituem a verdadeira religiosidade; nesse sentido, e apenas nele, sou um homem profundamente religioso.”
(Se eu fosse crente ao menos em intuição, diria que Einstein ‘soube’ que eu precisaria dele...)
Mas, do mesmo jeito que o gênio, cometo o ‘pecado’ típico da aculturação: misturo fé e religião, esquecendo que muitos vivem perfeitamente bem sem a última – ou ‘as últimas’, posto que tantas...
Abrindo parênteses: Einstein (ainda ele!) defendeu que não existiria nenhuma hostilidade de base religiosa entre os seguidores dos diferentes credos, e “até os conflitos no âmbito da religião seriam denunciados como insignificantes", se os fieis das religiões atuais tentassem sinceramente pensar e agir segundo, ao menos, o espírito dos fundadores dessas religiões.
Com isso não concordo, não... Se os fiéis da cada religião seguissem os fundamentos da fé pura, da busca incessante do mistério, da certeza da reintegração e da alegria, talvez – só talvez! – religiões perdessem o sentido plural e, contraditoriamente, sectário . (Para aprofundar o tema e se divertir ao mesmo tempo, sugiro ler ‘Zadig ou O Destino’, de Voltaire.)
Mas à parte os descalabros de certos ritos – que deixam qualquer um descrente da necessidade de religião, institucionalizada ou não – volto a concordar com Einstein e também não concebo um deus que premie e castigue suas criaturas, ou que tenha uma vontade semelhante à que experimentamos em nós.
Ora, essa confusão mitológica deveria ter sido erradicada com o fim do helenismo! Afinal, se somos bons apenas por temermos um castigo ou almejarmos uma recompensa, então realmente somos bem desprezíveis – e nunca soube de um ser inferior que tenha alcançado qualquer nirvana.
Concluindo: “Nossa tarefa deveria ser nos libertarmos, aumentando o nosso círculo de compaixão para envolver todas as criaturas viventes, toda a natureza e sua beleza.” (Gênio é gênio, eu copio - e pronto!)
A tarefa humana poderia ser reintegrar-se à perfeição...?
Através de poesia assim eu faço – e nisso não vejo contradição com o ateísmo, porque não é tentativa, mas fato.
Quanto aos casos relatados, resta o mistério e nada mais a dizer...