OS POBRES E O AUTOMÓVEL

Resultado mais simbólico da Segunda Revolução Industrial, o automóvel mantém-se como ícone máximo da cultura burguesa em todo o planeta. Se um dia a burguesia buscava igualar-se à aristocracia – à cultura aristocrática – ostentando uma biblioteca, hoje, e desde muito, o carrão é o que melhor tipifica e qualifica o status social. Não basta ser rico, é preciso mostrar-se rico, e o carro de luxo é o item que melhor pode dar visão ao fato de se estar rico. Numa história mundial de conflito entre classes – dominadora e dominada – nada mais corriqueiro do que as classes inferiores (ou inferiorizadas) buscarem identificação com as classes superiores. Riqueza é sinônimo de poder e bem estar. A pergunta é: quem, são, não almeja algum poder e bem estar?

Fala-se hoje em inclusão, esse jargão que já enjoa. Inclusão. O que é inclusão? Isso vai depender do ponto de vista. E até mesmo de quem, de fato, deseja ou precisa ser incluído no que. Em linhas gerais, e, possivelmente, segundo o senso comum, para o miserável, inclusão é uma cesta básica. Para o pobre não-miserável, inclusão pode significar ter acesso ao lazer e ao ensino profissionalizante. Para o pobre da classe C, inclusão é “sentir-se” incluído pela classe B, tendo acesso aos benefícios desta classe média, como colocar os filhos em escola particular e pagar um plano de saúde, já que a escola pública ainda é tratada com irresponsabilidade negligente pelos governos, e a saúde idem. Outro “fator” de “inclusão” é a posse de um carro. Com a renda média da classe C, o custeio de escola particular ainda não é uma realidade. Muito menos o custeio de um plano de saúde para uma família de quatro pessoas. Mas, sim, a prestação de um automóvel usado é bem mais barata que a fatura mensal de um plano de saúde pra toda a família. Pronto. Aí está a possibilidade de ascensão – ilusória, obviamente – social. O automóvel como redenção social. Contudo, o fato de ser ilusória a ascensão, isto não a torna pouco importante. Num país cuja condição de desigualdade social está entre as maiores e mais desonestas do planeta, o brasileiro precisa viver se arrastando. Um país que tem uma economia maior que a da Inglaterra. Educação e saúde de qualidade não há. Mas há o financiamento do automóvel, ao qual a população pobre se agarra como que a uma religião.

O automóvel é um tipo de totem. Os meninos são apresentados a ele bem pequenininhos. Um menino conhece um carro, e manipula um, ou seja, dirige um, bem antes de saber que Deus existe. Então, seja qual for sua crença quando adulto, ele vai adorar o automóvel. E ele, a máquina inanimada, o fará feliz, em retribuição. Ele o fará sentir-se incluído. Ele vai tratar da sua baixa auto-estima. Ele vai mudar a vida do seu possuidor. Isso sem falar na individualização do direito de ir e vir, nos horários e para os lugares para onde se pretende ir e vir. Seria isso pedir muito para um trabalhador? Esse mínimo consolo de cultura material? Mas, ainda que o automóvel não carregasse em si esse caráter sagrado citado, de item sagrado, uma simples informação bastaria para que pudéssemos classificá-lo como indispensável – e aqui não falo do automóvel como causador de status e bem estar psicológico: é a sabida precariedade do transporte coletivo, que, definitivamente, não está, em sua rede capenga, preparado para levar e trazer o cidadão aonde ele precisa e quer ir. Neste caso, nem mesmo países mais desenvolvidos, com menor desequilíbrio sócio-econômico, puderam ainda abdicar do carro. E provavelmente jamais o farão. Isso porque, além de o automóvel estar na raiz da cultura industrial burguesa, nenhuma rede de transporte coletivo pode ser capaz de atender aos caprichos humanos no tocante aos seus desejos de deslocamento.

Divino, o automóvel não será tocado. A burguesia mercantil industrial um dia o inventou, como uma maravilha, e agora vai ter que se virar com ele, realidade. Terá que construir novas estradas, evitar um colapso nas cidades, todas elas, não apenas as metrópoles. O número de aeroportos aumenta e vem trazendo a uma maior parcela da população a realidade – ainda distante dos pobres – das viagens de avião. Alguém sabe qual é a “pegada de carbono” de um avião? E pensar que muita gente que anda de avião vem pregando o uso da bicicleta... Ora, tentem então fazer a ponte Rio / São Paulo ou ir a Paris de bicicleta. Ou de caravela, pois assim haverá a certeza do ecológio-politicamente correto. Não. Todos sabemos, por mais que queiramos ser corretos e preservar o que sobrou do planeta, que não é mais possível abrir mãos dos meios de transporte “grandes”, movidos a combustível fóssil. Se servir de consolo, outro dia foi dito na TV que as emissões de carbono feitas pelo homem através da queima de petróleo em todas as suas formas, não chegam a 1% do carbono na atmosfera do planeta, e que temos cerca de 500 vulcões em atividade – estes, sim, jogam carbono no ar em escala inimaginavelmente maior do que toda a população humana andando de carro junta.

Mea-culpa: admitamos a importância da bicicleta, claro. Ainda que não sejam capazes de salvar o mundo, no reino sagrado das máquinas divinas, se os carros são deuses, elas, as bicicletas, bem que podem ser anjos.

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